“Um cientista tem que conhecer as suas limitações.”
(Dirty Harry, detetive vivido por Clint Eastwood)
Esta semana, ouvi o relato de alguém cujo pai se afogou dentro do Alzheimer. Um lento e dolorido eclipse da personalidade, com apagões que vão se ampliando até tornarem o corpo da pessoa amada em uma massa inerte e desprovida de vontade ou consciência.
A triste e comum história me provocou uma reflexão que assombra a humanidade através dos séculos.
O que nos torna o que somos?
O corpo, por si só, é um mecanismo biológico. Estruturado sobre células com funções específicas, possui instintos, como a da autopreservação e a procriação, e volta-se, fundamentalmente para a continuidade dos genes, como Richard Dawkins defendeu no seu conhecido (e bom) livro O Gene Egoísta.
Sob este aspecto, não nos diferenciamos muito da alface.
A resposta puramente materialista para a definição do “humano” é insuficiente. No correr da vida, trocamos constantemente de células, sem que percamos nosso histórico ou nos transformemos em outra pessoa. Em um nível menor, mesmo as células que permanecem conosco durante toda a vida agregam e perdem átomos. Sendo assim, não se espante: a matéria que compõe o seu corpo está em constante modificação. Você não é feito da mesma carne e sangue de alguns anos atrás.
O homem, fácil concluir, é muito mais do que a sua programação biológica, seu corpo ou a matéria da qual é feito.
Alguns dizem que a nossa diferença dos demais animais é a alma. Ela, eterna e etérea, conteria a verdadeira essência do “eu”.
A existência da alma é uma ideia bonita. Sem um exercício de fé, contudo, não passa de um recurso poético. O problema da fé é conter tudo em si mesma. A afirmação e a resposta, independentemente de qualquer demonstração ou argumento. Assim, para quem tem fé, a reflexão sobre o tema é desnecessária. Ele acredita e isso lhe basta. Este texto, por exemplo, seria uma perda de tempo.
Mas para os que são um pouco mais céticos, a pergunta continua. Afinal, o que nos torna o que somos?
A nossa personalidade. O conjunto formado pelo que vivemos, pelo que conseguimos compreender do mundo ao nosso redor, pela nossa capacidade de sentir e pelo nosso raciocínio. Essa é uma conclusão libertadora.
A nossa personalidade somente está atrelada ao nosso corpo porque ainda não descobrimos quais os processos físicos, químicos e lógicos (ilógicos também?) da sua formação. O cérebro é, hoje, o único recipiente conhecido para a personalidade. Mas, e quando não for? Estaremos livres para continuar a viver fora do nosso corpo? Para renascer ou mesmo multiplicar nossa personalidade em outros seres biológicos ou sintéticos?
Enquanto a ciência não nos dá respostas satisfatórias a estas perguntas, a filosofia e a arte são os canais que mais se aproximam de sugerir explicações e soluções.
A literatura e o cinema de ficção científica mostram-se, surpreendentemente, aqueles que oferecem algumas das melhores visões sobre o conceito de homem, de vida consciente e da libertação de ambos da prisão do corpo.
Em O Homem Bicentenário, um conto de Isaac Asimov que virou o filme de mesmo nome, Andrew (Robin Williams), um robô consciente, quer um corpo de carne e osso e a possibilidade de morrer com quem ama. Um Pinóquio moderno, que faz o caminho inverso, da vida sintética para a biológica e nos obriga a refletir sobre o que seria, exatamente, o “humano”.
Philip K. Dick, que teve diversas obras adaptadas para o cinema, era outro autor que adorava jogar com o conceito do que seria “humano”. No filme Blade Runner, o Caçador de Androides, baseado no seu conto Androides Sonham com Ovelhas Elétricas (no qual a história é um pouco diferente), os seres sintéticos são indistinguíveis dos humanos, a não ser que passem por testes específicos. Mesmo assim, são abatidos impiedosamente quando se rebelam contra a sua escravidão. A história possui várias camadas, mas o desfecho da cena final de perseguição põe em cheque tudo o que entendemos como “humanidade”.
Mais atual, no filme Transcendente: A Revolução, a mente do personagem principal é modulada e reproduzida dentro de um sistema de processamento de dados. Seu corpo morre, mas a sua consciência permanece. Ele sobreviveu? É ele ou algo parecido com ele que subsiste? Qual a forma de diferenciar?
Há uma infinidade de outras indicações, tanto em literatura quanto em cinema. Comédias, dramas e suspenses que derrubam as “cerquinhas conceituais” colocadas confortavelmente ao redor daquilo considerado como “o ser humano” e tentam descobrir quem ele efetivamente é.
Quem você é?