Desver

Desver

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“No meu olhar captei suas roupas, seu jeito de andar, de segurar e de olhar.
Com um grande susto, percebi que ela não estava na GunterStrász, e que eu não devia ter visto.
Imediatamente, e agitado, desviei o olhar e ela fez o mesmo, com a mesma velocidade.” (Tyador Borlú, policial de Bes?el)

Esta semana, terminei de ler o livro A Cidade & a Cidade, do autor China Miéville.

A ideia da história é simples e excelente. Bes?el e Ul Qoma são cidades diferentes. Seus países são diferentes. Os povos, a cultura e as línguas são diversos. Há, inclusive, uma grande rivalidade entre elas. Embora vivam um período de paz, já travaram guerras. Estas cidades partilham apenas uma coisa: estão situadas geograficamente no mesmo local.

Não. Elas não estão perto uma da outra ou têm fronteiras, como logo imaginamos. Elas literalmente estão no mesmo local. Como isso funciona? É complexo. Você anda na rua e pode ver, além da sua cidade, a outra. Elas coexistem. Ao andar de carro em Bes?el, você deve desviar dos carros que estão em Ul Qoma. Na rua, caminhas pelos cenários de ambas. De forma alguma é permitido que cidadãos de uma cidade passem para outra, a não ser em um ponto específico e com passaporte, visto e todo o restante da burocracia. Não se preocupe, imaginar as cidades sobrepostas é difícil para qualquer um.

A ideia do livro permite alguns conceitos fantásticos. Um deles, é o “desver”: não olhar ou fingir que não percebe a outra cidade, incluindo pessoas que passam ao seu lado, quase o tocando.

As pessoas são treinadas, desde pequenas, a não olhar para a outra cidade e seus habitantes. Caso ignores isso, cometerás “brecha”, um crime como o de tentar ingressar em um país ilegalmente.

Como se pode “desver” alguma coisa? Aqui a resposta é fácil e não precisa muita imaginação.

Hoje saí para correr. Estava um pouco frio. Nada assustador, mas exigia ao menos um casaco leve. No caminho, passei por uma mulher vestida apenas com uma camiseta. Ela se abraçava em si mesma e procurava abrigo junto a uma árvore, cujo grosso tronco lhe permitiria cortar um pouco do vento frio. Talvez, do outro lado da árvore, tivesse um local mais protegido para consumir drogas. Eu a desvi e segui com a minha corrida.

Nós desvemos pessoas e coisas ao nosso redor o tempo todo. Desvemos quem nos pede dinheiro nas sinaleiras. Desvemos crianças vagando pela rua. Desvemos casebres pendurados em áreas de risco.

Ao contrário de Bes?el ou de Ul Qoma, não há lei que nos obrigue a desver. Fazemos isso por uma questão de costume e comodidade. Simplesmente porque não fomos ensinados e educados, desde crianças, a encarar a realidade. Porque ver, olhar com atenção, perceber o que nos cerca, implica, no final das contas, em olhar para nós mesmos e para a nossa vida, que pretendemos perfeita e descompromissada.

Há teses econômicas e ideologias políticas que se baseiam no desver, embora não utilizem esse nome. Seus partidários colocam deliberadamente aquelas viseiras parciais, como as utilizadas pelos cavalos que puxam carroças no trânsito e caminham firmemente focados nos próprios objetivos. Ver é uma distração; desver, uma necessidade com fundamentação acadêmica. Não veem quem necessita, mas exigem que quem necessita não olhe para aquilo que acumulam.

E você, vê?

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