A internet e o juízo final.

A internet e o juízo final.

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O homem nu estava sentado em cima do portão. Um dos cotovelos apoiava-se no joelho, enquanto a mão segurava o queixo. A outra mão segurava o que parecia um celular, para onde olhava pensativo e com expressão severa.

Littlethigh olhou para a cena encantado. Era a personificação da estátua que conhecia. Como era mesmo o nome? Pensador, isso, daquele francês putanheiro. Não conseguia se lembrar do nome. Começava com R, isso tinha certeza.

Olhou em volta. Não havia nada. Apenas aquela porta gigante e aquele homem ali. Onde diabos estava? Aquilo era um sonho? Não parecia.

— Senhor? Senhor? — a figura não parecia notar a sua existência. — SENHOR?! Por favor. Onde eu estou?

— Na porta do inferno — respondeu a figura, sem tirar os olhos da tela.

— I… Inferno?

— Sim. É ali, do outro lado, do outro lado daquele rio. — Apontou para trás, ainda concentrado no aparelho. — Littlethigh olhou por uma fresta do portão e viu, ao longe e por entre a escuridão, uma figura com uma capa e um capuz. Dentes brancos se destacaram no negrume, em um sorriso mórbido. Caronte, o barqueiro, abanou para o seu novo cliente.

— Desculpa. Acho que estou passando mal. — Littlethigh se sentia tonto. Olhou ao redor novamente, procurando um ponto de apoio, mas não havia nada. Estava sozinho no vazio, com exceção do que havia atrás daquele portão.

— Sim, sim, você passou mal. Mas não se preocupe, porque já morreu.

Littlethigh concentrou-se em impedir um vômito de jorrar. Recuperou o fôlego e olhou para cima.

— Morri!? Como assim, “morri”!? Como foi que eu morri?

— É natural essa perda momentânea de memória em experiências traumáticas. Depois ela volta. Você passou mal quando viu o agente da polícia federal bater na porta. Foi um ataque do coração. — O Pensador passava o dedo pela tela, rolando as informações. De tempos em tempos, parava a imagem, lia e balançava a cabeça, em um movimento de desaprovação.

— Agente da federal. Meu Deus! Eu morri na frente da minha família!?

— Não. Sua família não sabe ainda. Mas vai saber daqui a pouco, pelo plantão policial. Você morreu naquele hotel que costumava ficar em Brasília. Sabe de qual estou falando? De certa forma, foi uma morte feliz. Partiu fazendo o que gostava. Cheirando coca e nos braços de quem amava, a Cleide e o Bianor. Aquele casal de programa.

— Meu Deus! — A tontura aumentou.

— Não adianta gritar, por que foi ele que te mandou para cá. Aliás, aqui ninguém dá muita bola para gritos. — Bem baixo, pela primeira vez, Littlethigh ouviu gritos de pavor e agonia vindos pela fresta do portão.

Tentou transformar o seu medo em indignação.

— Por que estou aqui? Por ter traído a minha mulher? Eu sempre a respeitei. Cumpri minhas obrigações de marido. Eu não deixei que faltasse nada para ela e para os nossos filhos. E a droga? Bem, eu era um doente. Era um vício. A Organização Mundial de Saúde diz. Não posso ser condenado por isso. — Rodin, o nome surgiu em sua cabeça. Era a porra d’O Pensador do Rodin que estava ali falando com ele! Será que aquilo era uma viagem louca do pó? Por breves momentos, teve esperança que sim. Logo, contudo, veio a certeza. Teve a certeza de que aquilo era real.

O Pensador deu um suspiro profundo. Estava a milênios fazendo aquilo e tendo as mesmas conversas.

— Não, não é por isso. Divertir-se sem machucar os outros, mesmo causando mal para si mesmo, e fazer amor não levam ninguém ao inferno. O Dante acertou bastante coisa, mas não sabia nada sobre o pecado. Faltava experiência para ele.

— Então, por que eu estou aqui?

— Bem, tem a corrupção… — Littlethigh o interrompeu.

— Mas eu recebia menos do que os outros. E era para campanha! Era caixa dois! Caixa dois não é nem crime!

O Pensador simplesmente continuou de onde tinha parado.

— Mas o principal são essas postagens na internet.

— Pos… Postagens na internet? Que postagens?

— Essas aqui que eu estou vendo. O teu histórico do face. As fotos do insta. Os tuítes.

— Porra, não dá! Não dá para condenar alguém por postagens! Que justiça divina é esta?

— Antigamente o trabalho era mais difícil. Tinha que olhar dentro do coração da pessoa, pesquisar o que tinham pensado no correr da vida, fazer um levantamento do que tinham feito. Era muita coisa. Demorava bastante tempo, embora tempo aqui não seja um problema. Agora ficou mais fácil.

— Ficou mais fácil?!

— Sim, basta uma olhada na timeline para ver o tipo de pessoa que estou julgando. Aqui na sua, por exemplo — pela primeira vez, o Pensador tirou os olhos do celular e olhou para Littlethigh —, tem ira, racismo, apologia à tortura, discriminação, vaidade, inveja, gula, orgulho… um pot-pourri de pecados capitais.

— Mas eram apenas mensagens. Brincadeiras! Ninguém leva isso a sério!

— Deus estava olhando. O tempo inteiro.

O Pensador voltou seus olhos para tela novamente e fez uma expressão de nojo. Não!?

— O que foi? O que está aí?

Spoilers! Você dava spoilers!

Littlethigh olhou para os pés, sentindo que a acusação começava a ficar séria.

— Mas…

— Não há “mas”. Os teus pecados são públicos. Todos conhecem. Você não se arrependeu. Não pediu desculpa aos amigos. Não quis amar mais. Ser solidário. Agora é tarde.

— Mas… Mas… Se eu tiver outra chance eu posso arrumar tudo. Eu peço desculpa para todo mundo. Vou doar todo o meu dinheiro. Vou ser fiel. Eu só posto fotos de gatinhos!

O Pensador levantou uma sobrancelha.

— Tem um círculo do inferno ali dentro só para quem posta fotos de gatinho. Os condenados permanecem com um pelo coçando dentro do nariz por toda a eternidade.

Littlethigh começou a chorar. O Pensador escreveu alguma coisa no celular e fez um gesto final ao apertar o botão send.

— Pronto. Já mandei o recado para o Caronte. Entra agora que ele está te esperando. Vais fazer um tour completo nos círculos. Mil anos em cada um. Assim, não menosprezo nenhum dos teus pecados.

— Não! Não!!!

— E aproveita o dinheiro do caixa dois que está no teu bolso e paga o barqueiro.

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