Um dia na vida.

Um dia na vida.

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“I saw a film today, oh boy
The English Army had just won the war
A crowd of people turned away
But I just had a look
Having read the book, I’d love to turn you on”
(“A Day in the Life”. John Lennon e Paul McCartney)

Ele abriu a grande folha de jornal, que mal cabia na pequena mesa da lanchonete. Sabia que sacar o celular do bolso do paletó e ler apenas as notícias mais interessantes era muito mais prático e rápido. Todo o resto do seu dia, contudo, teria que transcorrer daquela forma eficaz, objetiva e fragmentada. Logo quando acordava, queria apenas o conforto da calma e da ordem: ler todo o jornal na companhia de um café preto sem açúcar. Um hábito que cultivava há mais de quarenta anos. Melhor pensando, não era um hábito. Era um ritual de passagem entre o acordar e o dia que o engoliria dali a instante, cuspindo-o de volta na sua casa, exausto, em algum ponto da noite.

Olhou o relógio e viu que tinha mais meia-hora antes da reunião. Levantou a mão para pedir o café e parou o gesto na metade do caminho. A mulher entrava naquele instante. O sol inundava as amplas vidraças, fazendo com que o rosto dela ficasse parcialmente escondido na própria sombra. Os cabelos não eram mais pretos e lisos. Eram claros ondulados. Foi a maneira como mexeu neles, colocando para trás a insistente mecha que escondia metade do rosto, o detalhe que o fez ter certeza. Logo atrás, entrou um casal de adolescentes, vestindo o uniforme do colégio. Por fim, um homem trajando um terno escuro completou o grupo.

Ele acompanhou como que hipnotizado a família se ajeitar ao redor de uma mesa próxima. O braço ainda meio levantado, na não concluída tentativa de chamar a garçonete. Ela sentou de frente para ele.

Juliana.

Olhou-a sem entender, ainda, o que sentia. A idade não havia reduzido a sua beleza. Concedera segurança a seu olhar, onde antes havia um ar de falsa ingenuidade. Embora não ouvisse o que falava, era claro que distribuía tarefas à família. Baixou o braço e levantou o jornal da mesa, ocultando parcialmente o rosto. Foi um gesto quase involuntário de dissimulação. Não estava preparado para que ela o percebesse. Sabia que a sensação era boba, mas ele sentia estar invadindo a intimidade dela.

Continuou vigiando-a discretamente, até o som ambiente começar a tocar “A Day in the Life”, dos Beatles. Ela levantou o olhar da xícara de chá que esperava esfriar, despertada do planejamento do dia pela música. Olhou aleatoriamente pela lanchonete, até encontrar o olhar dele. Sua boca abriu um pouco, forçada pela surpresa. E os dois foram jogados no passado.

(Nesse ponto, seria interessante você parar de ler e colocar “A Day in the Life” para rodar. Seria melhor em um LP, mas qualquer outro meio serve).

Os dois estavam deitados na cama, lado a lado, ela com a cabeça apoiada no ombro dele. Os dois ainda um pouco suados. Cada um segurava um lado do encarte de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que pairava sobre as suas cabeças. Levavam ao limite os seus conhecimentos de inglês para tentar traduzir as letras. Toda a vez que um lado acabava, viravam o disco e voltavam para a cama. Passaram a noite inteira naquilo, improvisando e rindo nas grandes lacunas de letra que não conseguiam preencher. Viram a noite virar dia, sem se cansar de estar ali, apenas sentindo a presença um do outro.

Juliana foi embora cerca de um mês depois. O pai era médico do exército e foi transferido para Fortaleza. Juraram que continuariam a se falar. Cumpriram a promessa por dezenas de ligações telefônicas e quase dez cartas, que foram se espaçando até finalmente cessarem. Nada foi dito no fim. Conheceram outras pessoas. O tempo os transformou em uma lembrança.

A música acabou e ainda se olhavam. Estavam alheios ao entorno. O filho de Juliana chamou-a três vezes antes de tocar no braço dela e enfim conseguir a sua atenção. Ela respondeu alguma coisa, mas logo voltou-se para ele. Ainda sentiam o calor da conexão, mas ela começava a se dissolver no caldo da realidade. Ela sorriu e ele também. Um sorriso de reconhecimento e agradecimento. Não havia necessidade de outras palavras.

Ele dobrou o jornal e deixou-o junto com o dinheiro da conta em cima da mesa. Ao passar pela mesa dela, ele fez um pequeno cumprimento com a cabeça.

E saiu ao sol para a sua reunião.

Este ano, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band tornou-se um cinquentão, e esta é minha pequena homenagem a ele, ao dia mundial do rock e a todos os sentimentos que nos deu e nos devolve nos momentos mais inusitados.

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