“Solidão
Um fantasma que mata
E que maltrata o coração
É dor, angústia e sofrimento
O tédio é um eterno tormento
Assim é a solidão”
(Patrocínio, Argemiro. Solidão)
Você conheceu o Argemiro Patrocínio. Isso é uma afirmação, não uma pergunta. Acha mesmo que não? Ora, ele era técnico em refrigeração. Trabalhou no Ponto Frio. Ainda não lembra? Era carioca, morava em Oswald Cruz. Nada?
E se eu cantar: “A chuva cai lá fora, você vai se molhar, já lhe pedi não vá agora, espere o tempo melhorar, até a própria natureza está pedindo para você ficar”. Essa você conhece?
Pois, então, você conhece uma pequena parte de Argemiro Patrocínio.
Argemiro era um poeta. A falta de escolaridade, de dinheiro e de condições financeiras impediram que se dedicasse àquilo para o que nasceu: a arte, a poesia e a música. Mesmo assim, as dificuldades da vida não sufocaram a sua inclinação. A arte acabou se esgueirando por entre os entraves da pobreza e encontrou um caminho para a sua vazão.
Sua carreira foi retardada por décadas. Nascido em 1923, somente começou a compor e teve seu primeiro trabalho gravado com mais de cinquenta anos de idade, na década de 1970. Naquela época, no entanto, já era conhecido como um dos grandes pandeiristas da Portela.
Eu poderia continuar detalhando quem ela era, mas acredito que uma história demonstra isso por si só.
Depois do sucesso de “A chuva cai”, composta com o amigo Casquinha e gravada pela Beth Carvalho, Paulinho da Viola o levou num domingo ao Antonio’s, bar onde Vinicius de Moraes e Chico Buarque, além de Tom Jobim, Edu Lobo, entre outros, reuniam-se rotineiramente. Foi apresentado à elite da música brasileira como um “menino que estava começando agora” (Paulinho brincava com a idade de Argemiro) e que estava fazendo umas “músicas direitinho”.
Vinícius, o patriarca daquela quadrilha, olhou para ele e falou. “Faz música, mesmo? Então faz uma sobre essa garrafa aí”, e apontou para o objeto. Argemiro fechou o semblante e respondeu que não ia escrever sobre a garrafa, pois não estava sentido nada por ela. “Eu só faço samba sobre coisas que me inspiram.”
Foi para casa com aquilo na cabeça. No domingo seguinte, pediu para Paulinho levá-lo novamente àquele bar. Ao chegar, retirou a caixa de fósforo do bolso e batucou para a seleta plateia o samba que havia composto naquela semana, “Minha inspiração”:
[…]
Eu direi vocês estão enganados
Não faço sambas fabricados
Compreendendo vão me dar me razão
Somente escrevo que sinto
Falo a verdade não minto
Culpada é a minha inspiração
Já procurei escrever de outro jeito
Nada saia perfeito, porque não estava em mim
Não adianta eu forçar a minha natureza
Se o melhor do samba é a sua pureza
E eu forçando seria meu fim
Chico o olhou e disse. “Precisava isso tudo?”
Essa história é contada pelo próprio Argemiro no documentário O Mistério do Samba, produzido por Marisa Monte, e que levou mais de dez anos para ser filmado. O filme, imperdível, traz do esquecimento músicos da Velha Guarda da Portela, que participaram do nascimento do próprio samba. Argemiro, durante as filmagens, entregou à Marisa um caderno com mais de cem músicas, a maioria não gravadas. Algumas delas foram escolhidas para compor um dos melhores discos de samba já feitos, o único de Argemiro, e que leva, de forma singela, apenas o seu nome.
Nosso “técnico em refrigeração” escrevia músicas conectadas com a sua realidade. “A chuva cai”, por exemplo, retrata uma discussão que teve com a mulher, Dona Nina, que ameaçou sair de casa, mas foi impedida pela chuva.
O coração de Argemiro parou em 2003, enquanto dormia. Isso foi apenas quinze dias depois da morte de Nina. Como um poeta galanteador e apaixonado, não deve ter visto sentido em um resto de vida como um viúvo, apartado da sua paixão.
Diz-se que, com ele, partiu o último a tocar pandeiro com o estilo verdadeiramente portelense. É triste, mas é pouco, considerando que ele continua tocando o coração de todos que ouvem as suas músicas.
Dizem que o amor, cantado por Argemiro e Marisa Monte.