O medo é uma névoa que nos aparta da vida. Ele nos impede de enxergar com clareza. Distorce objetos. Oculta coisas importantes. Acaba nos afundando na incerteza. Quando denso demais, leva-nos à imobilidade. E a imobilidade é a morte, mesmo quando há vida.
Esta névoa se ergue ao nosso redor. Erguer-se não. Ela já está aqui. Apenas fica mais densa a cada dia. Não caminhamos mais na rua à noite. Não vamos mais a bairros desconhecidos. Não tomamos determinados caminhos. Deixamos de frequentar parques e outros espaços públicos. Deixamos de nos relacionar com desconhecidos.
Dissolvemos todos, lentamente, em meio à névoa.
Uma amiga foi roubada em ponto de ônibus, quando ia para o serviço. Um carro parou, três assaltantes armados desceram e assaltaram o grupo que esperava o transporte para o trabalho. Gente para a qual qualquer quantia, mesmo a da passagem, faz diferença. Pessoas que gastam um mês de trabalho para comprar um aparelho celular. Depois de tirarem tudo o que puderam das vítimas, retornam para o carro com o seu butim e seguiram à próxima parada, para continuar o saque. E assim seguiram, sucessivamente, toda a manhã. Eram piratas em uma costa sem lei ou proteção.
No dia seguinte, não havia ninguém na parada. Minha amiga e as demais pessoas espalhavam-se em pontos em volta dela. Um estava encostado em um poste. Outro, embaixo do telhado de um bar fechado. Todos controlavam a avenida, ansiosos, esperando um novo ataque.
A névoa está densa.
Eles sobrevivem nela há anos. Ela os abraça quando saem de casa, quando voltam para casa, e até mesmo quando estão em casa. Sempre há o risco, onde minha amiga mora. Ao redor dela, milhares estão imersos na mesma bruma.
Minhas preocupações cotidianas são, em um linguajar antiquado, “pequeno burguesas”. Geralmente os locais que frequento têm vigilância. Movo-me entre eles. O local que trabalho. Minha casa. A escola das minhas filhas. Quem pode pagar para se proteger, mantém esses ninhos, acima da névoa, e voa de um para o outro. De lá, colocamos a cabeça para fora, olhamos para o mundo e nos sentimos privilegiados. Idiotas.
Na semana passada, fiz uma viagem para o exterior com minha família. Depois da sexta fila seguida para apresentar documentos, passar em aparelhos de raios-x e ser revistado, dei-me conta da loucura daquilo. Nos locais turísticos que frequentei, andava tranquilamente com o carrinho da minha filha de dois anos, ignorando as duplas de guardas com submetralhadoras de prontidão junto ao peito.
A névoa está levando todos à escuridão. Uma escuridão que estamos construindo juntos, de mãos dadas.
Há medo da violência religiosa. Há medo da violência política. Há medo da violência de gênero, cor e raça. Ninguém fala da violência econômica, mas ela é a pior de todas.
As soluções propostas giram entorno da ideia de combater o medo com a violência. A proteção é necessária. É urgente, principalmente para quem não pode pagar para ter o seu ninho acima da névoa. Mas a proteção é apenas um paliativo. A ignorância se combate com estudo. Pobreza com trabalho digno e solidariedade econômica. Diferenças políticas e religiosas, com tolerância e alteridade.
Se não mudarmos nosso rumo, vamos deixar de enxergar uns aos outros.