No correr dos séculos, quem estava no poder sempre inventou justificativa morais para o seu domínio. Era necessária alguma explicação melhor do que a verdade – o simples uso da força, da economia e da política – para se perpetuar no poder de forma pacífica. Para isso, nada melhor do que a religião.
O rei, faraó, czar, sultão ou qualquer nome que se lhe desse tinha uma ligação especial com o além. Eles eram os “escolhidos”, “ungidos”, “filhos” e assim por diante. Ou você acreditava nesse link direto, nessa banda larga espiritual, e era um bom cidadão, ou você não acreditava e era um infiel condenado, no mais das vezes, à morte.
Em sua origem, assim, o conceito de nobreza é artificial. Uma ideia criada por quem queria se excluir do povo e constituir uma classe ou casta especial.
Nós tivemos a nossa própria cota de nobres impostos, que se instalaram no Brasil corridos da Europa e deixaram uma marca profunda na nossa cultura. Ainda hoje, quem se destaca é chamado “rei”. Nossa cultura de privilégios e pequenos exercícios mesquinhos de poder é própria de países estratificados em classes e com uma forte aristocracia.
E por que estou falando disso, se o título do texto menciona o Paulinho da Viola e a Marisa Monte?
Porque ontem eu tive contato com a verdadeira nobreza.
É muito difícil não ter uma alta expectativa quando se vai a um show desses dois artistas. E a expectativa é a mãe da frustração. Consciente disso, busquei me policiar no momento em que chegava auditório Araújo Viana em Porto Alegre, que fica no meio de um parque, tentando não me encharcar na forte chuva e evitar que o barro chegasse à canela.
Paulinho é um tímido. Entrou no palco com sua habitual discrição e elegância. Fez um breve cumprimento à plateia. Voz baixa. Pausada. Sacou o seu cavaquinho e o ar parou de ser apenas aquilo que respiramos, para se transformar em música. Milhares de cabeças dançavam em conjunto, sorrisos de satisfação se espalhavam, comandadas pelo bater nas cordas do cavaco e pela voz com a afinação perfeita. Se os irmãos Grimm vivessem no Rio de Janeiro, teríamos o conto do Paulinho da Portela, ao invés do Flautista de Hamelin.
Depois de cinco ou seis músicas que nos anestesiaram, Marisa Monte flutuou para o lado dele. Em um vestido longo, vermelho, sua presença dominou o palco (tenho certeza que Paulinho compartilha dessa opinião). Não me recordo de outra cantora com essa presença cênica.
E a partir daí, foi um golpe musical atrás do outro. Atacavam repetidamente sem permitir que a plateia se recuperasse. Colocaram-nos nas cordas e continuaram a jogar grandes músicas e grandes interpretações, sem a menor piedade.
Depois de uma hora de show, algo passou a me incomodar. Não entendia o que, até perceber meu cansaço. Estava exausto de me emocionar com aquilo que assistia. Fisicamente esgotado com a beleza.
Não posso deixar, contudo, de fazer uma crítica ao percussionista (pandeirista) da banda, Celsinho Silva. É obscena a forma como se diverte tocando. Ninguém deveria ficar tão alegre enquanto trabalha. É ofensivo, mesmo para quem gosta do que faz, como eu. Pensando bem, não deveria comentar a respeito dessa alegria “pornográfica” – é capaz de alguém tentar censurá-la. Nenhum cuidado é pouco nos tempos que vivemos.
E por falar em tempo, ele foi, efetivamente, relativo naquela noite. Músicas com cem anos de idade, como “Carinhoso”, conviveram com “Comida”, dos Titãs. A elas se juntaram décadas de preciosidades dos compositores da Portela, assim como dos repertórios de Marisa e Paulinho.
Nobreza não se compra. Não se inventa. Não se impõe.
Nobreza se reconhece.
Dobro os joelhos do meu texto a eles.