Este mês estive no Rio de Janeiro para a Bienal do Livro. Prometi-me que não falaria de clichês, como os da “cidade maravilhosa”, da “malandragem carioca” e da violência preocupante. Como as promessas que nós fazemos são, em regra, dúvidas e, poucas vezes, dívidas, eu descumprirei.
Olho o mar, que se estende indefinido no horizonte até sumir em uma união de tonalidades azuis com um céu sem nuvens. A praia fervilha em um domingo de sol. Estou escondido no ar-condicionado, protegido do calor e do vento. A paisagem é deslumbrante.
Ontem, enquanto corria pelo calçadão, vi uma mulher ser derrubada da sua bicicleta por um rapaz, de não mais do que dezesseis anos. Ele a jogou no chão e ficaram, por alguns instantes, em um cabo de guerra, que tinha como prêmio a bolsa dela. Ela gritava em meio das demais pessoas que passeavam, indiferentes. Encostados em um quiosque a poucos passos, outros menores olhavam a cena com atenção. Alguns riam. O desenrolar da cena foi rápido. Ele conseguiu arrancar o seu prêmio e correu em direção à praia, deixando a vítima no chão. Ela se levantou e correu atrás dele, gritando para alguém pará-lo. A bicicleta quase foi levada por outro menor, não fosse a intervenção de um casal que caminhava por ali. Acompanhei a corrida dela por alguns instantes, mas o perseguido acabou por sumir.
O resto da minha corrida foi de reflexão. Todas as vezes que vim ao Rio de Janeiro, presenciei cenas de violência. Desde roubos até o oferecimento de menores para prostituição, na rua, em zonas de turismo e de grande movimento.
Mas esse conceito de violência é fruto daquilo que sou. Um homem branco (na verdade um índio com europeu, mas isso é outra história), de meia-idade e estabelecido na vida (ou seja, que tem dinheiro para viajar, inclusive para o Rio de Janeiro).
E o conceito de violência para o menor que roubou a bolsa?
Alguém que nasceu na “barriga da miséria”, como diria Chico Buarque, e que nunca conseguiu sair dela. O que impediria aqueles menores, olhando o desfile de pessoas ostentando o que lhes é negado, de não tomarem o que querem? Quem é a vítima para o menor? A moça derrubada covardemente no chão ou ele mesmo, que a vida nunca deixou se erguer.
O que, afinal, impede os milhões de pendurados nos morros aqui ao redor de descerem e tomarem uma fatia do bolo. Do nosso bolo. Do bolo que escondemos como crianças gulosas, condenando as outras à fome?
Quais os mecanismos de convencimento – fantásticos, por sinal – que criamos para manter essas pessoas lá. Para lhes permitir a descida apenas nos primeiros raios do dia, a fim de que trabalhem ao nosso redor, limpando e servindo-nos. Forçando-as a retornarem ao cair da noite, com olhar cansado, aglomerando-se em paradas de ônibus.
Recordo-me de uma entrevista do General Figueiredo, na qual ele dizia, com a sensibilidade típica dos governantes da ditadura, que se o morro resolvesse descer, não existiria bala para todo mundo. É assim que a maioria encara o problema, como uma questão de segurança pública. Também é. O verdadeiro problema, contudo, é muito, muito maior. É o nosso estilo de vida e a sociedade que construímos.
Durante a Bienal do Livro, duas jovens aproximaram-se de mim. Uma delas estendeu um bloco e um lápis. A outra deu um sorriso nervoso. Não disseram nada. A mão estendida tremia um pouco. Fiquei momentaneamente sem entender o que ocorria. Queriam um autógrafo. Mesmo eu estando a léguas de um leve cheiro de fama, o simples fato de ser um autor (de um livro que não conheciam e que sequer era para a idade delas) justificava um autógrafo. Olhei ao redor. Hordas. Milhares de pessoas, em sua maioria jovens, entupiam os corredores dos pavilhões. A maior parte apenas olhava sedenta, pegava nas mãos e devolvia com olhar contrariado à prateleira a cultura que não tinham dinheiro para consumir.
Cultura. Ela é parte fundamental da solução. Se ao menos conseguíssemos garantir a todos uma educação de qualidade, teríamos menos vítimas, tanto lá em cima no morro, quanto aqui embaixo.