O que aprendi correndo uma maratona

O que aprendi correndo uma maratona

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Esta história começa há pouco mais de um ano, em um daqueles instantes nos quais dizemos “sim”, sem refletir sobre o que estamos fazendo.

Isso provavelmente acontece com você. Está lendo ou assistindo algo e a sua mulher senta sorrateiramente ao seu lado e diz “vamos viajar no feriado?” ou “a mamãe passará as férias conosco, tudo bem?”. Se fôssemos sinceros, responderíamos: “agora? Você quer discutir isso agora? No meio do jogo?”. Mas sinceridade demais não faz bem para as relações pessoais e pode destruir casamentos. Assim, dizemos aquele “sim” protocolar. Às vezes, damos um mero aceno de cabeça. Qualquer coisa para evitar discutir o assunto naquele instante.

Para você, a resposta foi um adiamento; para a sua mulher, um pacto de sangue.

Comigo aconteceu assim. Não me recordo exatamente das palavras, mas imagino algo do gênero:

— Amor, vamos nos inscrever para a maratona de Berlim?

— Maratona!?

— Sim, é por sorteio. São mais de duzentos mil inscritos para umas dez mil vagas de corredores iniciantes.

— Claro, amor. — E voltei a ler o meu livro.

Vejam, eu nunca sequer havia pensado em correr uma maratona. Não sou um sedentário. Pratico esporte regularmente. Corria distâncias de dez quilômetros e, uma vez, cheguei a me aventurar nos 21. Aquele era o meu máximo, acreditava. Tenho uma tendência a estar acima do meu peso, frequentes lesões musculares e me encaminho para a metade dos quarenta anos. A maratona e eu estávamos tão próximos quanto planetas que orbitam em sistemas solares diferentes. Até o dia no qual recebi uma ligação emocionada da minha mulher dizendo que havíamos sido sorteados. Sorteados para quê, eu quase perguntei.

Os sistemas haviam colidido.

E, então, veio a rotina de treinos. Treinos de velocidade, treinos de resistência, treinos simulando as condições da prova, treinos regenerativos, musculação. Seu cardápio muda. Sua agenda muda. Seu corpo, sua mente, você muda. Semana depois de semana, atinge o seu limite, apenas para empurrá-lo mais para lá.

No começo do treinamento, um amigo me devolveu uma frase que havia dito a ele, anos atrás, quando entrou em uma empreitada semelhante: ovelha não é para mato.

Nos momentos de exaustão, eu pensava constantemente no motivo de me sujeitar àquilo. Por que aguentar aquela dor, aquele cansaço, aquele sofrimento. Ser acordado pelo despertador às cinco da manhã, em um final de semana, ainda confuso pelo sono e subitamente perceber que deveria sair da cama para correr 30 quilômetros.

Por duas vezes estive bem perto de desistir. A primeira foi quando minha panturrilha não aguentou e estourou em meio ao calendário de treinos. Depois de uma lenta recuperação, veio a segunda, quando sofri uma desidratação em um treino de 25 quilômetros. Poucas vezes me senti tão mal. Aquilo, imaginei, era o limite que o meu corpo suportaria – miseravelmente, um pouco mais do que a metade do percurso da prova. Na semana seguinte, entretanto, lá estava eu de novo, correndo 28 quilômetros. As panturrilhas amarradas por proteções de Neoprene. Na próxima, foram 30. E assim por diante, até o dia da prova.

Quarenta mil pessoas largam na maratona de Berlim, uma das seis maiores do mundo. O espírito é de irmandade e festa. Afora os poucos profissionais do pelotão de elite, os milhares restantes compartilham a empatia e a união do objetivo comum – chegar vivo.

A partir do quilômetro trinta, você parece atravessar um campo de batalha. Ao seu redor, rostos em sofrimento. Corredores param subitamente, levando a mão à perna por alguma lesão. Há outros já sentados no meio-fio, com cara desconsoladas. Alguns alongam-se em postes, tentando diminuir a dor que os impede de prosseguir. Muitos caminham, reunindo forças para retomar a corrida. Se você pudesse, pegaria um deles pela mão e os puxaria até chegada, assim como eles fariam isso com você. Ao redor, o público grita e incentiva. Crianças lhe estendem as mãos. Muitos estão fantasiados. Em meio a tudo, você continua pondo um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Um pé… Parece que está correndo desde sempre. Cada passo, uma decisão entre continuar ou parar. Uma nova divisão entre o que é e aquilo que quer ser.

A maratona não é uma corrida contra outros. É uma corrida contra si mesmo. Contra os limites que você pensa ter. Contra a parte de você que quer desistir. Contra a sua parte que quer apenas descansar. Contra a parte que não quer que doa. Contra a parte que não quer, por qualquer um dos criativos motivos inventados pelo seu cérebro para impedi-lo de seguir fazendo aquilo.

A maratona é o triunfo da vontade sobre o instinto.

Cruzar a linha de chegada é reconciliar-se consigo mesmo. Poucas coisas são melhores do que esta paz.

Isso e perceber que algumas ovelhas são para o mato.

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