“[…] nem o futuro, nem o passado existem […].
Talvez fosse mais certo dizer-se: há três tempos:
o presente do passado,
o presente do presente
e o presente do futuro,
[…]
O presente do passado é a memória;
o presente do presente é a intuição direta;
o presente do futuro é a esperança.”
Santo Agostinho
A história deste texto é peculiar.
Há alguns meses, recebi um e-mail de um sobrinho, Ernani Neto, pedindo para eu ler uma história que escrevera. Havia certo constrangimento na mensagem. Bombeiro, não tinha o hábito de escrever. Ao menos, não repassava seus textos para outras pessoas.
Li e me emocionei. Fiz algumas observações e sugestões. Disse-lhe que deveria reduzir o número de caracteres, para facilitar a publicação. Depois disso, eu mesmo enviaria a história para jornais e sites. Passaram-se os meses e ele permaneceu em silêncio. Dei-lhe tempo.
Dia desses, perguntei-lhe acerca do texto. Ele explicou que não havia conseguido cortar. Entendi. Reduzir uma história como aquela seria difícil para qualquer escritor. Era quase como cortar a própria carne.
Entendi, também, outra coisa. Ele se contentava em saber que mais alguém conhecia aquela história. Ela não era apenas um texto. Era um desabafo. Ele precisava colocá-la para fora do peito e havia conseguido. Com uma personalidade mais para o tímido do que para o extrovertido, estava satisfeito.
Eu não estava satisfeito.
Aquela história deveria ser contada para outras pessoas. Era forte, verdadeira e continha uma mensagem clara e direta.
Então, decidi sentar e trabalhar. Minha participação limitaria-se a manusear a tesoura, cortando as gorduras, e a realizar correções pontuais.
Com o consentimento dele, contamos o que ocorreu naquela tarde.
— xxx —
Viva hoje
São comuns as mensagens de autoajuda dizendo “viva o hoje” ou “carpe diem”. Elas mandam aproveitar o presente, não guardar rancores, perdoar e amar como se não houvesse amanhã. A verdade é que concordamos com elas, mas raramente as seguimos.
Sou bombeiro. Realizo resgates dos mais variados tipos. Todos os dias, essa mensagem é jogada dentro da minha ambulância, junto com alguém que luta por sua vida.
Ontem, fui visitar um amigo que voltava de viagem. Ao entrar na rua dele, uma lembrança me assaltou. Gritava em minha mente, querendo ser revivida. Algo que eu fingia não recordar. Um resgate que nunca contei, sequer para mim mesmo.
Era uma manhã de sol e eu assumia o plantão da ambulância destinada a socorros de traumas e emergências médicas, a ASU. Com poucos anos de profissão, sentia orgulho toda a vez que me tornava responsável pelo plantão. Cada atendimento era um novo aprendizado. Poucos minutos depois, eu e meus dois colegas fomos chamados pelo rádio comunicador. Alguém havia caído de uma escada. Era uma ocorrência comum e, quase sempre, um trauma leve.
Ao chegarmos no local, reconheci a rua na qual tantas vezes brinquei com o meu amigo. A boa lembrança logo virou um mal pressentimento. Paramos em frente à casa onde pessoas acenavam desesperadas. Descemos e corri em direção ao paciente.
Ao realizar a primeira avaliação, percebi que não seria algo rotineiro. A vítima era um jovem. Caíra da escada e estava de bruços em uma poça de secreções e vômito. Rolamos ele de lado, para liberar as vias aéreas e permitir que respirasse. Quando o virei, reconheci o rosto. Um pouco mais velho que eu, havíamos estudado na mesma escola, ele algumas séries à frente. Era bem quisto e extrovertido. E estava em parada cardiorrespiratória.
Não havia pulso. Fiquei nervoso e iniciei as compressões. Pedi ao meu colega, um bombeiro experiente, que montasse os demais equipamentos de reanimação. A ambulância de suporte avançado, uma UTI móvel que contava com médico e enfermeira, foi chamada. Continuamos os procedimentos de reanimação. Cada segundo era um infinito. Conseguimos um ritmo cardíaco “chocável”. Utilizamos o desfibrilador, sem sucesso. As compressões torácicas continuaram. Em algum momento, o médico aportou ao meu lado. Iniciou manobras médicas avançadas com tubos, acessos venosos e adrenalina. Outro socorrista me substituiu nas compressões.
Foi só então que olhei em volta. O lugar onde estávamos era a casa da vítima. Sua família estava bem ali. Sua esposa, com um bebê no colo. O filho do jovem rapaz que tentávamos trazer da morte. A ela, juntavam-se outros familiares. Ela me perguntou para qual hospital o levaríamos. Como eu queria poder responder àquela pergunta. Não havia, contudo, uma resposta possível. Estávamos longe disso. Pedi a ela, apenas, para aguardar as informações do médico. Pensei que precisávamos trazer ele de volta.
Voltei às compressões, sentindo-me no dever de dar uma boa notícia à família. Depois de dois minutos, o monitor cardíaco indicava um desesperançado risco continuo. Então, orei. “Senhor, meu coração deve estar a 180 batimentos por minuto, por favor eu posso tranquilamente dividir com ele e cada um ficar com 90”.
Continuamos ali por mais quase duas horas. Ao nosso redor, a família observava o tempo todo. Mudos e assustados. Até o médico balançar a cabeça negativamente e declarar o óbito, com voz sentida. Então, o choro irrompeu em todos nós
A esposa contou que, naquele dia, como nos outros, ele estava na porta da casa, à beira da escada. Uma caneca de café na mão. Junto à sua família. Um dia qualquer, com suas infinitas possibilidades à frente.
Por algum motivo, caiu. Não se sabe qual. Nunca se saberá.
Viva a sua vida hoje. Aproveite o dia.
“A vida é um sopro”, como disse Oscar Niemeyer já com mais de noventa anos.