Há uma informação importante que você precisa saber a respeito dessa história. Não tenho certeza de que ela ocorreu na páscoa. Pode ter sido no ano-novo ou mesmo no carnaval. Na verdade, não importa. Textos baseados em fatos não contêm erros, mas sim licenças poéticas.
Estamos no início dos anos 2000. Eu havia “herdado” um sítio dos meus pais que, depois de passar por uma reforma de vários meses, transformei em um mostro de madeira com dois andares e cinco quartos. O sítio ficava em frente a uma lagoa imensa e era retirado da civilização. Ali, durante vários anos, reuni amigos, amigos de amigos e, até mesmo, futuros inimigos, para festas que duravam dias seguidos.
O quarto da frente chamava-se República. Era, em regra, destinado a solteiros. Nos dias em que se passa essa história, estava lotado. Duas mulheres e quatro homens distribuíam-se por dois beliches e uma cama de casal.
Os nomes são fictícios, para preservar a minha saúde de eventuais retaliações dos envolvidos.
Naquele dia, Leonardo desceu para ir ao banheiro, como religiosamente fazia todas as manhãs junto com o raiar do sol. Aliviado e ainda sob o efeito do álcool, foi até a ampla porta de vidro da frente, ver o sol se levantar sobre a lagoa. Seus olhos pareceram lhe enganar. Próxima à pequena praia, jazia a caminhonete de outro integrante da casa, Luís. As duas rodas dianteiras estavam no ar. A traseira havia descido um barranco e estava firmemente enterrada em um lodaçal que margeava o caminho à lagoa. Esfregou os olhos e tentou focalizar. Era aquilo mesmo. Ali estava a Blazer, como um dinossauro pego em uma armadilha.
Ainda sem acreditar naquela cena insólita, olhou em volta e encontrou uma fila indiana. Luís, Bukowski, Cristano e outros dois retornavam para a casa carregando pás, enchadas, uma picareta e um carrinho de mão. Uma cópia pampeira e grotesca dos sete anões voltando, cansados, do trabalho na mina.
Ao entrarem em casa, Leonardo perguntou o que, diabos, havia acontecido. Todos tinham ido dormir há menos de três horas, depois de mais um churrasco hepatoapocalíptico. Como aquela caminhonete aparecera plantada como um abacaxi na beira da lagoa e o que eles estavam fazendo lá?
Luís, com olheiras profundas pela noite repleta de acontecimentos, explicou. Recém-separado, havia se engraçado com uma das meninas que estavam na casa. Como havia muita gente e a irmã mais velha da guria também estava ali, resolveram ser discretos. Depois que todos foram dormir, saíram sorrateiramente e foram fazer uma contabilidade do número de ondinhas que chegava na praia da lagoa.
Diante da emoção envolvida, Luís manobrou mal o seu veículo e acabaram desbarrancando para o pântano.
O melhor dessa história, para mim, vem agora.
Luis retornou para a casa e acordou, um a um, todos os que estavam na República. Explicou que a sua caminhonete, pesando quase duas toneladas, estava atolada em um pântano. E pediu, então, que a pessoa se levantasse, vestisse, colocasse uma ferramenta nas costas e fosse com ele, às 5h da manhã, chafurdar na lama.
E eles foram.
Essa é uma história sobre o poder da amizade.
É claro que, ainda bêbados, tanto de sono quanto de álcool, o máximo que conseguiram depois de uma hora de trabalho foi cavar um buraco ainda mais fundo para o monstro de metal.
Somente soube da história quando acordei no outro dia, perto do almoço. Fui, então, brigar com Luís. Por que ele não tinha me acordado? Eu era o único que podia, efetivamente, ter resolvido o problema. Minha caminhonete rebocaria o abacaxi de metal para fora do pântano.
A resposta foi simples. Se ele me desse o prazer de fazer aquele salvamento, eu nunca mais o deixaria em paz com essa história.
É, faz sentido.
Fica só entre nós, Luís