Filho, quando sentires saudade do teu avô, olha-te no espelho.
Epitáfio de Antonio Victorino Marimon.
Ele vive nos filhos, netos e bisnetos.
Epitáfio de Euclides Fagundes.
Eu lia o processo, sentindo-me desconfortável. Não sabia exatamente o porquê. Era apenas mais uma audiência, entre a dezena que tinha de fazer naquela manhã. Mais uma na rotina de conflitos. Uma ação simples. Mas ela me incomodava. Resolvi ler a petição de novo, com concentração. Havia algo ali que não havia percebido, pelo menos, não conscientemente.
A empresa queria pagar sua dívida pelo término do contrato de trabalho, mas não sabia para quem. O trabalhador havia morrido subitamente. Um ataque cardíaco. Depois do início do processo, tentávamos encontrar herdeiros. No endereço onde vivia, os vizinhos disseram que ele não possuía uma companheira. Também não conheciam qualquer parente. Pesquisa aos cadastros revelaram que os pais já haviam falecido. Era filho único. Não havia registrados filhos ou outros dependentes em seu nome. Não havia ninguém.
Olhei a ficha funcional e detive-me na foto. Um homem de aparência serena. Por volta da metade dos cinquenta anos. E então percebi o que me incomodava.
Não havia qualquer continuidade naquela vida. Depois dele, não vinha ninguém. Ninguém para relembrar o que havia feito. Contar suas histórias. Louvar as suas qualidades. Rir dos seus defeitos. Não olhariam a sua foto com saudade. Ele havia sumido do mundo. O que se poderia conhecer daquele homem, estava ali. Números e informações frias. As horas extras que fez há dois meses, mas não a forma como sorria. Sua inscrição no Programa de Integração Social, mas não o time para o qual torcia.
O último ato daquela vida seria ali, naquela manhã quente de final de verão. Em uma sala com mobília funcional, discutiríamos algo que, para ele, não importava mais – dinheiro. Seria uma discussão distante e profissional, sem qualquer sentimento e entre pessoas que não o conheceram.
Fiquei encarando o processo por alguns instantes, permitindo-me ser levado pela tristeza, enquanto não era trazido de volta pela necessidade de examinar os demais processos da pauta.
Eu me coloquei no lugar dele e senti um vazio. Algo pior do que o medo de morrer. Em muitos aspectos, somos imortais. Nossa biologia viaja através dos tempos, nos genes dos nossos filhos. E nos genes dos filhos dos nossos filhos. Nossa essência sobrevive impregnada na memória daqueles com quem convivemos. Enquanto eu viver, meus pais viverão em mim. E nas histórias que conto e contarei às netas deles. Parte do que penso e do que sou ficará gravado naquilo que escrevi.
Aquele desconhecido, contudo, talvez tivesse uma vida plena. Escolheu não ter filhos. Quem sabe, viveu uma grande paixão. Ou mais de uma? Ao mesmo tempo? Pode ter partido em paz e ser pranteado pelos amigos. Quem era eu para julgar a felicidade e o legado de alguém, assim, do nada? Eu nem o conheci e estava fazendo do seu extrato do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço quase um jogo de búzios.
Talvez a minha tristeza fosse apenas uma racionalização tacanha e apressada. Uma projeção do meu próprio medo de ser erradicado da face da terra.
O pensamento “Polyanna”, a tentativa de fazer o jogo do contente e extrair um lado bom de tudo não funcionou. Ao final, éramos eu e a minha frustrada tentativa de me conectar e entender aquele homem cuja memória se eclipsaria para o nada. Por fim, premido pela necessidade de analisar os outros problemas daquele dia, passei ao processo seguinte. A audiência veio e se foi, exatamente como eu projetei que ocorreria.
Hoje, passadas algumas semanas, bebo enquanto escrevo este texto e lhe dedico um brinde mudo e singelo.
Não me recordo mais o seu nome.
Quem se recorda?