Os brasileiros voaram no tapete mágico do desenvolvimento por mais de dez anos. Os ventos sopravam democracia em nosso rosto. O fluxo do dinheiro circulando na paisagem nos hipnotizava. Havia um cheiro de euforia. Víamos nossa imagem e sorríamos. Um sorriso pateta. Perdemos o juízo crítico. Perdemos o cuidado. O ouro é a ilusão dos tolos.
Pelas franjas do tapete, descartávamos as ideias que nos pareciam absurdas, abjetas e ultrapassadas. Imaginamos cada uma delas caindo na planície e sendo levadas pela corrente da evolução. Escorrendo no esgoto do esquecimento, até desaguarem no mar do passado. Seriam dissolvidas na história. No máximo, virariam notas de rodapé na gloriosa nova biografia que reescrevíamos para o Brasil.
Mas o tapete mágico sentiu o peso da nossa omissão. Caiu subitamente, jogando-nos ao chão, feridos e surpresos. Éramos como crianças que caem do berço. Aos poucos, levantamo-nos, sentindo dores. Envergonhados pelo tombo gigantesco. Envergonhados por termos que caminhar novamente. Ao nosso redor, o dinheiro dissolvia-se no ar, emanando um cheiro pútrido. E seu pó espalhou-se ao solo. E, assim adubado, dele se ergueram figuras monstruosas.
Eram as velhas ideias. Mais assustadoras do que antes. Com nova roupagem. Recobertas com camadas de maquiagem. Mesmo assim, conseguimos reconhecê-las. Elas tinham sido nossas. Há décadas atrás. Algumas, há centenas de anos. Não haviam partido para o esquecimento. Ficaram por ali. Entranhadas no nosso meio. Discretas. Alimentando-se do nosso lixo cultural. Quando estavam fracas, não lhes demos atenção. Não as extirpamos de vez. Como ervas daninhas, cresceram e se fortaleceram. As velhas ideais. E agora tinham a sua chance. Ergueram-se rapidamente e marcharam em nossa direção. Contra nós, os tolos relapsos.
A primeira a nos atacar veio travestida de um homem. Um homem que despreza os direitos humanos. Foi uma agressão inesperada. Doía como dar socos em um espelho. Parecia uma autoagressão. Foi um ataque à traição.
Depois, vieram os golpes com objetos sagrados. Bíblias, alcorões, torás, escapulários, relicários… batiam-nos sem piedade. A cada batida, uma frase de ordem sobre alguma verdade absoluta. Um comando para que as aceitássemos. Não conseguíamos sequer levantar nossas cabeças. Víamos apenas relances daquelas ideias encarnadas, que nos agrediam. Vestiam pedaço de blazers, calças sociais e gravatas, parecidas com as de políticos. Eles manejavam aquelas armas com destreza. Ouvíamos louvações, mas víamos cólera.
Rompemos aquela maré santa e corremos. Alguém nos acenou ao longe com uma bandeira branca. Gritava pela paz. Fomos em sua direção. Ao meu lado, alguém parou subitamente. Virei-me e vi o seu corpo no chão. Foi alvejado no peito. E então compreendi. Era a ideia da paz pelas armas. Gritei para que os outros parassem. Era tarde. Uma nova rajada derrubou outros tantos. A paz, ali, era a do campo de batalha, no dia seguinte à luta. Era a paz dos assassinados.
Fugimos em outra direção, mas mulheres começaram a sumir. Mãos as agarravam. Dedos surgiam apontados para elas. Putas, burras e incapazes, eles diziam. Logo após, começaram a desaparecer os gays, as lésbicas e todos os que não fossem homens e parecessem homens. Eram as ideias moralistas nos alcançando. Ah, os moralistas! Eram centenas. Milhares. Sufocavam-nos com suas palavras de ordem. Entoavam mantras de como deveríamos ser. De como deveríamos agir. De como deveríamos pensar. De quem deveríamos amar. A quem deveríamos obedecer. Falamos, imploramos, mas então os censores apareceram e colocaram mãos em nossas bocas.
Eu me lembro de sufocar. E me lembro daquele cheiro. O cheiro do ódio. O cheiro doce da putrefação. E, então, alguém me puxou. Um impulso de esperança. Rastejando, alguns de nós escaparam, tentando voltar ao tapete. Mas alguém o havia roubado. Escapava sozinho, elevado por seu egoísmo. Gritamos para ele voltar. Em vão.
E ali estávamos. Cercados por aquelas ideais monstruosas. Agora, elas vinham devagar. Saboreando o momento da vitória.
Restavam poucos de nós. E apenas uma saída.
Lutar.
Com todas as nossas armas.
Ao meu lado, uma menina apanhou a sua flor.