A orelha e a ideologia de gênero

A orelha e a ideologia de gênero

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— Professora, não estou conseguindo ouvir.

Todos ficarem em silêncio, apreensivos. Joãozinho era novo na escola. Não sabia as regras. A professora sorriu amarelo. Fingiu que nada tinha sido dito e voltou a ler o texto para a turma. Joãozinho passou os olhos em volta. Todos pareciam compreender o que ela dizia. A voz dela, contudo, estava baixa para ele.

— Acho que estou com a orelha entupida — falou mais para si do que para os outros.

Um grande “ooohhh” se espalhou pela sala. Todas as crianças se viraram em direção a Joãozinho. Ele se encolheu na cadeira, surpreso e inseguro. A professora parou no meio do parágrafo, de boca aberta. Levou um instante para se recuperar.

— Não fale mais isso, Joãozinho! Não se fala sobre isso aqui!

— Do… Do quê?

— Isso que você disse.

— O quê?

Agora, a professora estava claramente contrariada.

— “Orelha” — ela falou, constrangida. Ouviram-se alguns risos abafados dos alunos por a professora ter dito aquilo.

— Orelha? — perguntou Joãozinho, sem compreender.

— Psiu — ela levou o dedo à boca. — Queres ir para a direção?

— Mas…

— Sem “mas”. Não se fala sobre isso aqui.

O rosto de Joãozinho era de total surpresa. Sem perceber, tocou a sua orelha. Ele não se conformou.

— Por quê? Todo mundo tem orelha.

Um novo e grande “ooohhh” se formou. Dois colegas que sentavam no fundo da aula começaram a rir alto. Foi a vez do Joãozinho ficar brabo.

— O que aconteceu! Eu só estou falando da minha orelha! — Gritou para todos, como um pequeno animal acuado por predadores.

Começou uma comoção na sala. Uma menina irrompeu em prantos. Outra saiu correndo da aula, ofendida. O riso no fundo da sala era generalizado. A professora gritava, mas não conseguia acalmar ninguém.

Joãozinho ficou, também, apavorado. Não conseguia compreender que loucura era aquela.

Texto absurdo, não?

Todos têm orelha. Têm boca. Nariz. Pernas. Nosso corpo tem sistemas variados, como o cardiovascular. E funções, como a cognitiva (embora algumas pessoas optem por não a utilizar). Sentimos fome, dor, prazer, saudade, desejo…

Muito embora existam definições biológicas, elas são apenas parte do complexo conjunto de elementos que nos define como pessoa. Não há explicações claras para certas preferências. Não escolhemos, no mais das vezes, do que gostamos e do que desejamos.

Você já tentou escolher quem ama? Quantas vezes se apaixonou pela pessoa errada, tentou esquecê-la e não conseguiu?

E as preferências de alguns fogem àquilo que consideramos “natural” ou “normal”. Por exemplo: a maioria gosta de comer picanha. Uma minoria, brócolis. Brócolis, vejam bem! Que desvio de caráter gustativo.

Assim funciona com todos, inclusive com as crianças. Agora, imagine ser uma criança que gosta de brócolis em uma turma de adoradores de picanha. Coloque-se no lugar dela e tente imaginar suas sensações de confusão, isolamento e infelicidade. Você prefere que esta criança seja acolhida e respeitada? Que lhe seja explicado não existir problema em ser diferente? Que lhe seja dito “tudo bem, gostar de brócolis não é ruim, existem outros que gostam”.

E aí chegamos no ponto central da controvérsia sobre a “ideologia” de gêneros. Você acha, mesmo, que falar sobre aparelho reprodutor, sexo, desejo, heterossexualíssimo, homossexualismo e outros temas ligados à sexualidade definirão, influenciarão ou, como os moralistas adoram dizer, “corromperão” a juventude?

Sério que você acha isso?

Todos nós conhecemos alguém que foge aos “padrões”. Você acredita que ele aprendeu isso na escola? Ou que alguém lhe influenciou para definir quem o atrai?

Vou contar uma pequena história. Um amigo tinha um filho que, desde antes de aprender a falar, gostava de brincar com bonecas. Aliás, tinha uma que ele não soltava por nada, em qualquer lugar que fosse. Era claro, para todos que o conheciam, a sua inclinação natural. E ele se tornou um adulto feliz e realizado, por ter crescido em uma família que o amava e o respeitava como pessoa.

Eu poderia ter sido tapado de bonecas e continuaria amando as mulheres. Isso, talvez, apenas me desse uma noção melhor do universo feminino. Da mesma forma, forçar um homossexual a negar a sua sexualidade e enchê-lo com armas não vai transformá-lo em um hétero. Talvez, o transforme em um psicopata frustrado e assassino. Mas, com certeza, não o transformará em um hétero.

Enfim, não há qualquer “ideologia” em uma discussão sobre gênero na escola. A escola deve discutir a vida como ela é.

E isso inclui, até mesmo, falar sobre orelha.

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