O que me surpreende nas distopias, aquelas histórias que se passam em sociedades doentes e distorcidas, onde os cidadãos são oprimidos das mais variadas e criativas formas, é a capacidade delas se tornarem realidade.
Elas se esgueiram das linhas dos livros, dos palcos de teatro e das telas de cinema para invadir nosso mundo. Fazem isso de forma silenciosa e insidiosa. Quando percebemos, já estamos vivendo em meio a uma delas, sem perceber. As distopias são traiçoeiras e nos iludem. Tornam o anormal, normal e, sem que percebamos, passamos a viver como elas desejam.
Eu poderia citar vários exemplos. Nosso momento político. A forma como a economia transforma homens em objetos. A utilização da religião como forma de escravizar populações. Mas prefiro um exemplo trivial. Algo do nosso cotidiano. Uma realidade alternativa na qual milhares de brasileiros são forçados a entrar diariamente, sem saber exatamente como sairão dali. Essa realidade alternativa se chama Previdência Social.
Vou contar um caso que aconteceu comigo esta semana.
Eu estou preocupado com a minha aposentadoria (como todo brasileiro está ou deveria estar). Fiz uma consulta ao meu cadastro no Tribunal onde trabalho e notei que faltavam ali as contribuições de quando fui empregado em uma corretora de seguros.
Intrigado, consultei os registros do Instituto Nacional do Seguro Social. As contribuições estavam lá. Todos os dados certinhos, nome, nome da mãe, CPF etc. Daí, em minha ingenuidade, voltei ao meu Tribunal e solicitei que eles consultassem o cadastro e registrassem aquelas contribuições e aquele tempo de serviço.
Óbvio que não seria tão fácil.
Eu deveria pedir uma certidão ao Instituto Nacional do Seguro Social. Argumentei. Mas o Tribunal e o Instituto Nacional do Seguro Social são da União. Está tudo na mesma base de dados, por que vocês não consultam? A resposta foi aquele não protocolar. Não é assim que funciona! Por causa da lei, do regulamento, da portaria, da orientação e assim por diante.
Conformado, fui ao INSS pegar a certidão para comprovar o que tanto ele quanto o meu Tribunal já sabiam.
Óbvio que não seria tão fácil.
Para pedir ao INSS uma certidão das contribuições que fiz, eu tinha que solicitar uma certidão ao meu Tribunal, dizendo que eu queria solicitar a certidão do INSS.
Confuso?
Acredite. Eu precisava de uma certidão para pedir uma certidão. E para registrar uma coisa que tanto um lado quanto o outro lado já sabiam.
Eu requeri, então, a certidão ao meu Tribunal. Bem, agora era só encaminhar o pedido ao INSS.
Óbvio que não seria tão fácil.
Fui alertado. A certidão do Tribunal só vale por trinta dias! Ou seja, eu tinha um mês para conseguir um agendamento no INSS, ou teria que voltar ao início e pedir outra certidão-de-pedido-de-certidão.
Entrei no site do INSS e fiz o requerimento. Solicitaram que eu digitalizasse diversos documentos. Todos eles, com informações que o Instituto já tinha. Inclusive, da carteira de trabalho, para comprovar o vínculo de emprego que já estava registrado lá.
Digitalizei e mandei tudo. Consegui a data. Tudo certo.
Óbvio que não seria tão fácil.
O sistema caiu. Perdi todo o meu trabalho. Refiz o requerimento. Reenviei os documentos. Já não havia mais a data que eu desejava para agendamento. Consegui outra.
Naquele momento, eu já havia percebido que a distopia tinha tomado conta da minha vida. Não sei bem qual era, mas apostava no Processo, de Kafka.
Uma das vantagens de ser um leitor contumaz, é que isso lhe dá alguma experiência nesse tipo de história. Ao menos, os movimentos mais previsíveis você consegue antever. Assim, no dia marcado, arrecadei todos os documentos possíveis, enfiei numa pasta, e fui para a fila do posto do INSS. Se você me pedisse a prova de Matemática do segundo trimestre da quinta série, estava ali dentro.
A atendente, um senhor de idade, olhou-me por sobre os óculos, não conteve um pequeno sorriso, e começou a me pedir os documentos. Um a um, fui passando a ele.
Já nos encaminhávamos para o final do atendimento e ele estava nitidamente desconfortável. Ainda não havia conseguido me mandar embora pela falta de algum papel. Quando chegou ao final da sua lista, aquele pequeno sorriso voltou. Ele ia dar a sua cartada final. A que não falhava.
— E o seu comprovante de residência?
Para que, eu pergunto, seria necessário um comprovante de residência? Meu endereço está no cadastro deles. Eu declarei meu endereço. Era meu interesse requerer a certidão. Por que, raios, eu mentiria o meu endereço? Mas, bem, se as coisas fossem lógicas, eu sequer estaria ali sentado na frente dele, para começo de conversa. Respondi, então:
— Não diz, em nenhum lugar, que eu precisava apresentar um comprovante de residência.
— Diz sim. — O sorriso se alargou.
— Aonde?
— No site.
— Não, não diz.
— Bem, é eu preciso do comprovante para o seu requerimento. Você tem? — Inclinou-se para a frente, saboreando a vitória. Dei um segundo, quase, para falar.
— Tenho. — E tirei da pasta a conta de água. Xeque-mate.
Mais contrariado do que gato a cabresto, ele pegou o papel com a ponta dos dedos, como se estivesse sujo, e voltou à digitação. Sorri pela primeira vez.
Mas, como sabe você já sabe, óbvio que não seria tão fácil.
Depois de um longo tempo e de ele digitalizar de novo todos os documentos que eu já havia enviado digitalizados, olhou-me outra vez por cima dos óculos.
— Não sou eu quem analisa o pedido. Ele vai para uma fila. Eu também não posso dizer quando será analisado. — O pequeno sorriso voltou.
— Mas como eu serei avisado?
— Pode ser por telefone, por e-mail ou pelos correios. Fique atento! ¬— E chamou a próxima senha.
E assim, encerrou-se o primeiro volume dessa distopia.
Aguardo sem ansiedade o segundo.
Só sei que, obviamente, não será fácil.