A vida tem um roteirista ruim

A vida tem um roteirista ruim

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Você está vendo o filme, ainda tentando decidir se gosta dele ou não e, de repente, aquele baque: o roteirista joga em cima de você uma coincidência forçada.

Coincidência forçada, em obra de ficção, é como receber uma cantada ruim na festa. Você pode até seguir com o papo, mas é porque está com muita vontade.

Esta semana, via uma série brasileira. Uma boa produção, atuações decentes. A história se passava no Rio de Janeiro do final dos anos 1950. A protagonista chega na cidade e conhece alguém na Zona Sul. No outro dia, vai em um samba de fundo de quintal na Mangueira e encontra essa mesma pessoa. Chance de isso ocorrer? Praticamente zero.

Eu poderia ter desistido ali (tolerei e segui em frente, mas isso não vem ao caso). O problema é que, se pensarmos bem, a vida é cheia de “coincidências forçadas”. Elas nos jogam de um lado para outro, alteram tudo, reviram nossa vida e não temos a opção de simplesmente fechar o livro ou mudar o canal.

Alguns chamam isso de destino. Outros de acaso. Na maioria das vezes, estas coincidências são interpretadas como experiências religiosas.

Vou dar um exemplo real.

Um adolescente, no final dos anos 1980, estava angustiado em casa. As férias tinham acabado e as aulas recomeçado. Ficou afastado da namorada por mais de um mês. Veranearam em locais diferentes. Na época, não havia celulares, mensagens eletrônicas, Internet ou qualquer outra forma de comunicação instantânea. Se você queria conversar com alguém à distância, a saída era o telefone fixo. Queria escrever? Carta ou telegrama. Ainda existiam pombos correios, mas eram raros. Ou seja, mais de um mês sem saber um do outro. Quando se reencontraram, a temperatura do namoro havia caído para próximo a zero grau.

Naquela tarde, ela preferiu sair com uma amiga, para colocarem o papo em dia. E ele estava em casa, sem fazer nada. Então resolveu dar uma caminhada até a loja de aluguel de cds, o equivalente ao serviço de streaming de música hoje, pegar alguns e gravar novas fitas cassete para a sua coleção, que já era grande.

No caminho de volta, ouvindo aqueles walkmans gigantes, que levavam umas seis pilhas, estava de cabeça baixa, meio triste. Pensava se o namoro tinha terminado ou não. Parou para atravessar uma rua e olhou para o carro que vinha rápido. E ela estava lá. Banco do carona. Rindo. Ao lado dela, um homem que ele não conhecia e que não conseguiu ver bem. Ficou parado, olhando para o carro se afastar, rápido como veio.

Qual a chance disso acontecer? De ele ter saído de casa por impulso, em um horário qualquer, ficado na loja um tempo não programado, voltar por um dos caminhos possíveis e ainda assim estar no exato local, olhar para o exato carro no exato segundo que ela demorou para passar?

Se essa fosse alguma passagem de um livro, eu o fecharia na hora e jogaria perto da churrasqueira, para lhe dar algum fim útil. Mas, como eu disse lá em cima, na vida real não se pode mudar o canal e passar para outra história. Somos prisioneiros do nosso passado e aquele garoto voltou para casa mais triste, mas de certa forma aliviado. A indefinição de continuar ou não com ela era pior. Saber que terminou era libertador.

Se alguém estiver roteirizando nossa vida, certamente não se importa de utilizar coincidências forçadas, clichês e fórmulas batidas. Você vai olhar para trás e verá que o seu caminho é pontuado disso. Eu o imagino divertindo-se enquanto dedilha alguma antiga máquina de escrever, pouco se lixando para a opinião do público ou, mais importante, para a sua opinião. Ele está acima disso. Aliás, esse seria um bom nome para um culto ou algo do gênero, a “Igreja do Grande Roteirista”.

Assim, quando um filme, um livro ou seja-lá-o-que-for utilizar uma coincidência forçada, seja tolerante. Certamente esse autor não consegue chegar aos pés do Grande Roteirista.

 

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