Pai

Pai

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Há alguns meses, o pai de um grande amigo faleceu. Estava com cerca de noventa anos. E a relação dos dois foi atribulada. Esse meu amigo não é nenhuma criança. Também é pai de três filhas. Mantém um casamento feliz. Encaminha-se para uma aposentadoria produtiva. Mas a relação com o pai era um espinho encravado embaixo de uma das unhas da sua alma. De acordo como ele mexia, doía. Às vezes, inflamava.

A vida gosta de colocar esquinas pela nossa frente. Em regra, nem reparamos nelas. Caminhamos apressados, de cabeça baixa. Concentrados em alguma das centenas de pequenas coisas que achamos importante no nosso dia a dia. Algumas vezes, contudo, vindo da outra rua, dobra na esquina o passado. E você se vê frente a frente com ele, quando menos espera.

Com o meu amigo, ocorreu algo semelhante. Visitou o pai no final de semana anterior. E conversaram. E se arrependeram. E sentiram muito. E choraram. E menos de uma semana depois, o pai havia partido.

Temos uma lista dos amigos mais próximos, com os quais mantemos contato através de um desses aplicativos de conversa online. A notícia, obviamente, consternou a todos. E começaram as mensagens protocolares (embora sinceras) de sentimentos e pêsames, pois acreditamos que muito não há a falar nesses momentos.

Mas havia muito a falar.

Começou com uma mensagem simples e direta, como convém aos melhores pensamentos. E ela dizia que as boas lembranças eram a forma de superar a tristeza pela ausência do convívio físico. E dizia mais. Que pais nunca se perdem, se ganham. E passar para nossos filhos aquilo de bom que os pais nos deram seria a forma de eternização da vida.

Foi lento, mas as mensagens começaram a chegar. Cada um lia a anterior, encontrava-se com o significado do seu próprio pai e compartilhava um relato confessional. Como se fosse uma terapia em grupo virtual.

Sobre o meu, escrevi o seguinte.
“Perdi meu pai cedo. Nossa relação era ótima. Ainda baratinado pela perda, no dia seguinte ao enterro fui ao escritório, para tomar pé das contas a pagar etc. No escaninho, tinha um papel com algo que eu havia feito (uma conta paga ou uma petição que protocolei ­- algo simples, não lembro o que era). Junto com ela, preso com um clipe, estava um bilhete. Dizia só: ‘Obrigado, filho. Pai’. Não lembro quanto tempo chorei ao pegar aquilo. Tenho o bilhete ainda. E ainda choro quando leio ele.”

Em tempos de irracionalidade e polarização, as mensagens que trocamos naquela noite são exemplos vivos das coisas que verdadeiramente nos unem e daquilo que aparentemente nos separa. Infelizmente, não posso as transcrever aqui. Mas uma delas, a do meu amigo, eu compartilho, como um presente.

“Amigos. Na eleição de Olívio, sopraram ao velho que um filho iria votar no PT. Uma noite, liguei pra casa, ele atendeu e eu disse: ‘Oi, pai’. Ele respondeu, com sua voz de tribuno (e dos bons, que era): ‘Quem vota no PT é meu inimigo’. ‘Na verdade, liguei pra falar com a mãe. Ela está aí?’. Dias depois, num jantar no Copacabana, encontrei Olívio e contei a história pra ele que me respondeu, pondo as duas mãos nos ombros e, solenemente, olhando-me nos olhos: ‘Mas, companheiro, com o pai a gente não briga’. Levei vinte anos para contar a história para o velho, que ouviu, riu e disse: ‘Olívio é um grande homem!’. Encerramos a conversa, sem retratações e sem acusações. Suguei o seu amor até o final. Nunca briguei com ele. Mesmo com motivos. Mas tenho a alma leve por saber que consegui tudo o que podia dar e precisava dele ter: amor, carinho e amparo. Nos quatro últimos dias pude chorar, rir, beber (cachaça) e ainda ouvir uma de suas últimas frases sobre política, enquanto assistia a tv: ‘Pelo amor de deus, cala essa boca pra parar de dizer besteira’.

Agora vão lá e abracem seu pai.

Mesmo que seja na memória.

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