Essa histórias foram colhidas caindo pela beirada de uma mesa, molhadas pelo vinho e adornadas por sorrisos. Eram boas demais para apenas se perderem ao vento.
Mais do que reminiscências, são entalhes que dão forma à alma de alguém cujo nome fica preservado na memória afetiva dos amigos.
Para o restante do público, basta conhecê-lo como o anônimo Homem Bom (não confundir com o genocida Homem de Bem).
O ano era 1979.
A ditadura apertava a Argentina pela garganta, impedindo que ela desse qualquer sussurro de protesto. A noite quase virava madrugada em Buenos Aires. As ruas estavam desertas. Pior do que o ar frio era o frio da vigilância.
O Homem Bom caminhava de mãos aquecidas e entrelaçadas com a sua cara metade em plena Praza de Mayo. Voltavam para o hotel, algumas quadras distante, na própria Avenida de Mayo.
Olhou em volta. Ninguém à vista. A alguns metros dali, iluminada e tão orgulhosa o quanto pode ser um amontoado de tijolos, argamassa, concreto e tinta, recortava-se do negro a Casa Rosada. Dentro dela, o ditador Jorge Rafael Videla.
O Homem Bom olhou para os lados novamente. Apenas ele e seu amor na rua. Deu mais alguns passos e não se conteve. Pediu para ela esperar e foi até uma árvore. Com cerimônia, olhando para a Casa Rosada, abriu a braguilha e começou a mijar em uma árvore. Um sorriso esboçou-se em seus lábios.
Antes que ele se formasse inteiramente, três viaturas se materializaram ao seu redor. Pareciam saídas de baixo do chão e de cima das árvores. Luzes vermelhas e circulares rasgavam ao seu redor. A rua antes deserta foi tomada por um pequeno batalhão. Armas saltaram do coldre. Gritos confusos em espanhol pediam para o marginal se virasse.
O Homem Bom passou por um momento angustiante de indecisão. Ou deixava de cumprir a ordem ou a cumpria e virava-se para os seus captores com uma arma, digamos, diferente em mãos.
Com um braço erguido e outro na braguilha tentando “se colocar honesto”, cumpriu o comando antes de tomar um tiro.
Há uma coisa que vocês precisam saber a respeito do Homem Bom. Ele parece um cara sincero, sereno e ponderado. Com muito jeito e conversa, conseguiu convencer a armada ao seu redor de que aquele mijo não era um gesto político. Era sim um ato de desespero fisiológico. O preconceito também lhe ajudou. Nossos irmãos portenhos esperam qualquer loucura inconsequente de um brasileiro, até mesmo urinar inadvertidamente no jardim de Videla.
Depois de um longo tempo de ameaças e recriminações, o casal foi liberado para seguir diretamente ao hotel. Óbvio que o Homem Bom não se contentaria com aquela imposição. Entrou em um bar no caminho. E viu uma viatura passar lentamente pela porta. Quando ela sumiu na esquina, o casal saiu a passos largos na direção que prometera. Pouco depois de chegarem lá, enquanto ainda estavam no elevador, ouviram dois homens entrando e pedindo informações deles ao recepcionista.
Ao final, embora acreditasse ter sido seguido nos dias seguintes, o Homem Bom não foi preso ou deportado.
Consta da sua ficha apenas a suspeita de cometer terrorismo-escatológico.
O ano é 1989.
O Brasil regozija-se com a volta da democracia. A campanha presidencial ganha as ruas. As intenções de voto pulverizam-se em mais de uma dezena de opções. A esperança da direita, Fernando Collor de Mello, ponteia nas pesquisas.
O Homem Bom está no centro de Porto Alegre, trabalhando. Mas um rufar constante vindo da rua o incomoda. O barulho de multidões reunidas no entorno da esquina democrática não é incomum, principalmente durante aquela campanha. Mas sua curiosidade fica atiçada. Não se recordava de nenhum ato marcado para aquele dia. Liga o rádio e logo descobre. Fernando Collor visita a Capital. Não só visita, como está no seu prédio.
Ele sai do escritório e vai para o corredor. O prédio é antigo, daqueles em que os corredores se abrem para uma ampla área interna, onde todos os andares podem ser vistos. E, logo em seguida, aparece ele. O candidato sai de uma sala, rodeado por apoiadores e asseclas. De todos os andares, partem gritos. Na sua maioria, vaias dos office boys, que também estavam curiosos pela visita. O Homem Bom desce as escadas correndo. Aquela é a sua oportunidade.
Consegue chegar até o séquito antes que ele ingresse no elevador. E imediatamente começa um bate-boca. Collor, que nunca foi conhecido por sua temperança, responde. E as agressões verbais prosseguem. O Homem Bom inesperadamente se viu rodeado pelos office boys, que descem de todos os andares para aproveitarem a confusão. A discussão fica generalizada. Neste momento, Collor comete seu erro. Chama o Homem Bom para a briga. Aqueles chamados que valentes fazem, por cima dos ombros de amigos, quando estão distantes do possível agressor. O futuro presidente, relembro, propagandeava a sua faixa preta de caratê, posando para fotos em poses marciais.
A turba faz sua dança. Assustado com o crescente número de pessoas que os rodeiam e hostilizam, o séquito desiste de ingressar no elevador e começa a mover-se em direção às escadas.
E, nesse movimento, uma fenda se abre. O Homem Bom dá dois passos rápidos através dela. Toma embalo e, jogando-se no ar ao melhor estilo das lutas do programa Telecatch, emplaca dois pés no peito do seu contendente. Espatifa-se, em seguida, no chão. É pisoteado. Acima dele, a confusão se avoluma. Collor, amparado para não cair com o golpe, é levado escada abaixo. Na rua, também há confusão. Dois carros são rapidamente preenchidos e partem, sob as vaias e os golpes de uma multidão que se enfurece.
O Homem Bom, ainda sentindo as dores da queda, vê o carro partir.
Sente-se um pouco vingado pelo dia em que, ali perto, foi preso em uma passeata contra a ditadura.
Mas isso já é história para outra crônica.