O livro que escrevo nesse momento passa-se no sul do Brasil. Na sua última porção, antes de o pampa começar a falar castelhano. Os chamados “campos neutrais” são uma porção de terra que se estende do final de Rio Grande, até a o Forte de San Miguel, no Chuí. Duzentos quilômetros de uma larga faixa de terra, espremida entre águas, tomada por campos verdes e com poucas árvores. Os campos somente deixaram de ser neutros em meados do século XIX, quando o Brasil revolveu povoá-lo. No fundo, todos sabem que eles têm somente um dono – o vento – que sopra incessante, de variadas formas, durante todo o ano.
Trabalhei cinco anos em Santa Vitória do Palmar. Cheguei em maio, depois de passado o verão, mas quando ainda se mantinha uma temperatura que permitia sair na rua e retornar vivo. Num dos primeiros dias, resolvi correr. Hermenegildo é a praia de Santa Vitória. Ela fica a pouco mais de vinte quilômetros. Nos meses de verão, quase toda a cidade se muda para lá. Em maio, contudo, o “hermena”, como é chamado, já está novamente deserto. Quase como uma cidade abandonada no deserto. A praia é uma larga faixa de areia fina e compactada, que se estende das dunas ao mar. Um corredor natural. O lugar perfeito para correr. E eu me larguei por aquela vastidão, em direção ao nada. Cerca de seis quilômetros depois, a corrida transcorria como uma atividade quase zen budista. Eu estava distante da civilização, em um momento de união com a natureza. Eu tinha praticamente ingressado em uma cadeira prática de um daqueles cursos de autoajuda, “redescrubra-se”, “una-se à natureza”, “valorize o que importa” … Bem vocês entenderam a ideia.
E então, enquanto eu aproveitava esse idílio em forma de movimento, levantei os olhos da areia por alguns instantes e vi o horizonte tremendo. Ele se mexia. “Uma miragem provocada pelo sol de fim da tarde”, pensei. Fiquei ali, olhando e encantado com o momento. Não bastasse a sensação de paz e desconexão, o lugar ainda me oferecia ilusões óticas. E então surgiram guampas em uma dessas ilusões. Logo depois, várias guampas. E, por fim, centenas.
Minha corrida virou um trote e, por fim, parei chocado com o que estava acontecendo. Embaixo das guampas, desenharam-se grandes massas marrons. E elas vinham correndo na minha direção. Aliás, a única direção possível. Permaneci encarando a massa compacta avançar rapidamente. Com ela, vieram os gritos dos tropeiros, que tocavam a boiada em um trote curto. E latidos. Muitos. Só então percebi que deveria tomar alguma atitude.
Olhei para a esquerda e vi as dunas íngremes. Considerei escalá-las. Os latidos aumentaram muito de volume. Uns seis cães ponteavam a boiada, a toda velocidade, diretamente na minha direção. Eu não chegaria nas dunas antes deles me alcançarem. Vejam, eu sou cachorreiro. Adoro cães. Quase nunca tenho medo de um, por mais brabo que seja. Mas fica o meu conselho. Não se espera parado quando uma matilha com cachorros do tamanho de terneiros corre latindo em sua direção no meio do deserto. E assim, fui-me para dentro do mar, que estava mais próximo, e onde poderia mergulhar e me livrar da perseguição.
Entrei de tênis e tudo dentro da água glacial. Dois cães logo desistiram de mim, acredito, satisfeitos pelo meu banho. Outros quatro ficaram latindo na beirada, desestimulados em sua caçada provavelmente pela temperatura da água. Um deles latia e rodando aos pulos no próprio eixo, como todo bom vira-lata faz. Um único atirou-se no mar, mas logo tomou uma onda na cabeça e voltou, raivoso e derrotado, para junto dos seus companheiros.
Comigo ali, a boiada começou a passar. Não tenho ideia de quantas cabeças havia. Os animais continuaram o seu desfile por alguns minutos. O pior de tudo, sem dúvida, foi aguentar o riso aberto dos tropeiros, ao me ver no mar, com água pelas pernas, sendo empurrado pelas ondas constantes.
Deixei eles se distanciarem antes de iniciar, derrotado pela vida, meu patético retorno. O clép-clép dos tênis encharcados acompanhou-me todo o caminho, como uma lembrança de que se jogar na imensidão dos campos neutrais não é o mesmo que estrelar um comercial de margarina.
No entanto, como bom gaúcho de apartamento, ainda demorei algumas histórias para dar algum sentido ao que significa estar no pampa.
Depois eu as conto.