Cinco chamadas

Cinco chamadas

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O som digitalizado persistia. Forçou-se a ignorá-lo. O vento enfiava mãos no cabelo da sua parceira. O mundo era pintado em pinceladas grossas e descuidadas de negro e vermelho no entorno da fogueira. Ouvia o barulho suave dos movimentos do mar. Ele estava ali, a alguns passos. Era uma certeza sem provas. E de novo o som alarmista se sobrepôs a tudo. Uma faca destroçando a harmonia. O som cessou. A cada trégua, uma esperança. A cada novo toque, uma frustração. Ao seu redor, dezenas de figuras indistintas. Sua mente fez um último esforço para adequar os chamados ao cenário e desistiu. O toque do celular enroscou-se na sua consciência e puxou-o dali.

A realidade insiste em se fazer tornar realidade.

Acordou assustado, ainda com as mãos no volante. A sinaleira apresentava um verde chamativo, que não era ofuscado sequer pela claridade daquela tarde. Olhou sobressaltado ao redor. Não havia outros veículos. Ele e o seu carro estavam sozinhos na rua, naquela unidade sedimentada por mais de uma dezena de horas trabalhando juntos, em centenas de dias seguidos.

Balançou levemente a cabeça, como que para deixar cair os pedaços do sonho que se agarravam a ela. Quanto tempo permaneceu dormindo? Segundos? Minutos? O celular ainda tocava. Olhou para a tela em cima do painel. A vigia incansável, que lhe observava por todo o dia, brilhava com a foto de Dora.

Resistiu antes de atender. Uma hesitação provocada pela última ponta de orgulho, cultivada em um vaso de amor-próprio que encolhia dia a dia. Sua resistência durou mais dois toques.

— Que demora! Está dormindo?

Ele não conseguiu deixar de dar uma pequena risada triste.

— Estou dirigindo Dorvalice. — Ela detestava o seu nome e ele sempre dizia que ela tinha razão. Isso a deixava ainda mais brava. Dizê-lo era a sua pequena vingança por ter lhe retirado daquela beira de praia. — O que tu quer?

— Preciso ir na faculdade. Me busca aqui em casa. — Nada na voz dela acusava que tivesse percebido a provocação.

— Não posso, estou indo buscar um passageiro — mentiu.

— Então cancela a viagem e vem aqui!

— Tu sabe que eu não posso cancelar. Chama alguém pelo aplicativo, como todo mundo.

— Não. Pelo menos para dirigir confio em ti. — Aí estava. Ela não só tinha ouvido a provocação, como a devolveu. — Quando terminar a corrida, me busca. Avisa quando estiver chegando. E não demora!

Ela desligou sem lhe dar tempo de responder. Baixou o tapa-sol e olhou-se no espelho minúsculo. Os olhos estavam um pouco vermelhos. Afora isso, a imagem apenas testemunhava as imperfeições de sempre, aprofundadas pelo cinzel dos seus quarenta anos. Abriu o console ao seu lado e retirou a pílula de cafeína de um pote já quase esgotado. Ela desceu com alguma dificuldade pela garganta seca. Não deixava de se surpreender com o poder que Dora ainda exercia sobre ele.

Como se estivesse acorrentado aos remos de uma galé, empurrou a alavanca de câmbio e deu movimento ao carro.

— xxx —

A loira vistosa, que em verdade era morena, abriu a aporta e atirou-se no banco ao seu lado. O mesmo lugar que ocupava nos sete anos de duração do casamento. Talvez a única coisa que permaneceu igual, pensou. A saia vermelha e solta, em tecido fino, subiu durante o movimento dramático de entrada, deixando hectares de coxas expostas ao sol e desafiando o seu olhar. Ela fez questão de não se ajeitar. Ele fez questão de não olhar diretamente. Um jogo tenso de nada fazer. Tentava captar, contudo, o máximo possível da cena com o canto dos olhos.

— Vamos, senão vou chegar atrasada.

A voz era carregada daquela agressividade em baixa voltagem, que passou utilizar com ele a partir do momento indefinido onde o amor cansou e foi ultrapassado pelos problemas cotidianos. Talvez ela sequer notasse. A agressividade tinha se tornado a linguagem natural dos dois. O rosto perfeitamente maquiado era uma fachada proposital de indiferença. Ele conhecia aquelas máscaras e o que estava por detrás. Por algum tempo, foi-lhe permitido ir além da aparência. Tiveram um conexão verdadeira. Ou assim, ao menos, gostava de imaginar. Além da roupa e da maquiagem, o perfume que se espalhou pelo carro denunciava o esmero dela ao se arrumar. Sabia que aquele cheiro o acompanharia por algumas horas, entranhado no carro, como se a máquina também gostasse dele. Aquela produção seria para se mostrar a ele? O trânsito os recebeu, enquanto ele mergulhava silenciosamente em antigas dúvidas.

O ar gelatinoso manteve-se por todo o caminho. Qualquer inexperiente em separações, afirmaria ser impossível ter, um dia, grassado felicidade naquele convívio. Ele não entendia bem por que continuava o chamando para levá-la de um lado a outro. Era como se fosse forçada a continuar revisitando o campo de batalha e conferindo os seus escombros. O silêncio somente foi interrompido quando carro parou.

— Não esquece do jogo do Luiz na sexta. Ele só fala nisso.

— Claro que não vou esquecer.

— xxx —

A senhora era mínima. Ele abriu a porta e segurou a mão recoberta pela luva de seda, acomodando-a na imensidão do banco traseiro. Já transportara, em suas cadeiras especiais, crianças maiores do que aquela delicada velinha. Por sob a aba do chapéu e antes do início do elegante vestido creme com bordados, via-se um pequeno sorriso. Tudo gritava graça e fragilidade na simpática anciã. Dirigiu desviando dos buracos e evitando quaisquer acelerações e freadas bruscas, com o medo inconsciente de que a porcelana da qual ela aparentava ser feita se desfizesse sob a sua responsabilidade.

— A senhora está muito bem vestida. Indo para alguma festa?

— Obrigada. — A voz era surpreendentemente alta e firme. — É a festa de formatura da minha bisneta. — Olhou para o próprio corpo, como que surpreendida pelo que vestia. — Usei esse vestido no casamento do Jango com a Maria Thereza.
Ele a olhou pelo retrovisor. O sorriso mantinha-se inalterado. Fez um cálculo rápido. O casamento tinha ocorrido há cerca de sessenta e cinco anos. Conclui, alarmado, que aquilo poderia ser verdade. Também poderia ser apenas uma brincadeira dela. Ficou curioso, mas resolveu não perguntar, pois poderia ofendê-la. Optou por um gracejo protocolar.

— A senhora já tem uma bisneta? Nunca diria.

— O senhor é um galanteador. Não parecia. São os piores. Os que não parecem.

— No que ela está se formando?

— Geografia. Coitada. Se tivesse entrado para as Carmelitas Descalços, não faria um voto de pobreza tão forte.
Ele sorriu. Decidiu gostar daquela senhora.
— Pois eu sou formado em História. Entendo o que a senhora quer dizer.

— História? — Ela olhou para ele e para o carro, inclinando a cabeça um pouco para o lado e levantando brevemente as sobrancelhas, como se aquilo resumisse o seu ponto.

— Dei aula alguns anos. Gostava bastante.

— E o que aconteceu? Desistiu?

— Fui “desistido”, na verdade. — Pensou se queria falar naquilo, mas foi levado pela simpatia. — Dei aula por quase dez anos. Daí quiseram me despedir e recontratar como se fosse uma empresa. Achei aquilo um absurdo. Acabaram só me despedindo.
Ela apenas balançava a cabeça, concordando. Ele continuou, tentando resumir suas recordações, justificando-se tanto para ela quanto para si próprio.

— Fizemos alguns protestos. Envolvemos professores de outros colégios. Mobilizamos o sindicato. Não deu em nada. Em verdade, deu sim. Quase nenhum dos que protestou conseguiu outro emprego. Ficamos marcados. Nem respondiam quando enviava um currículo. — Deu um suspiro e emendou. — De qualquer maneira, ninguém mais quer empregados, só “pejotas”.

Apontou para a foto do filho sorrindo no celular à sua frente. A dúvida lhe assaltou. Há quantos dias não via o Luiz? Desde a terça da semana anterior? Não conseguia se lembrar. Ali sentado, os dias diluíam-se na mesmice. Não haviam inventado uma máquina de viagem no tempo, mas já havia uma máquina de pasteurização do tempo — era o carro de um motorista de aplicativo. Emendou a conversa, depois de um permanecer com o dedo no ar por alguns instantes.

— Tenho um filho. O dinheiro acabou logo e… — fez um gesto com os braços, como se mostrasse o carro — tornei-me um “empresário do ramo de transportes”. — A pompa que empregou quase ocultou a amargura que sentia.

O sorriso da senhora sofreu um breve eclipse. Ela se esforçou para desenterrar-se do meio do banco e colocar a mão enluvada no ombro dele.

— A gente faz o que tem que fazer, meu filho.

— xxx —

A ponta vermelha com farol aceso entrou na sua frente, saindo em velocidade de uma garagem. Invadiu metade da faixa de rolamento e parou, tornando-se uma barricada de metal. Não havia tempo ou espaço para frear. Jogou o carro para a direita. Os pneus soaram reclamações finas e esganiçadas, enquanto um para-choque passava a centímetros do outro. Pisou de leve no freio e corrigiu a trajetória, trazendo o carro de volta para a pista da esquerda. Ele gingou de um lado a outro, até se aquietar. Tudo passou tão rápido que sequer teve tempo de xingar o motorista-do-bico-vermelho.

Ainda sob o efeito da adrenalina, virou-se para se desculpar com seu passageiro. Ele sequer parecia ter notado. Continuava absorto no seu celular, que segurava com as duas mãos colado ao peito. A cabeça dobrava-se para baixo em um ângulo improvável. Pensou que a musculatura do pescoço, como as demais, se desenvolvia com tempo e treinamento. A confirmação do nome do garoto que usava toca de lã preta mesmo no calor daquele final de tarde foram as únicas palavras que trocaram.

Além do pescoço adestrado a novas funcionalidades, achava incrível como a nova geração havia desenvolvido a visão periférica. Costuma olhar os alunos entrando na sala. Praticamente não precisavam mais olhar diretamente para nada. A atenção era dedicada à tela. O resto executava-se de forma automática. A interação com o mundo físico estava sendo relegada a movimentos parassimpáticos.

O silêncio do garoto dava-lhe tempo para pensar. Aliás, rodar pela cidade dava-lhe tempo demais para pensar. E a imaginação, que costumava usar como asas, era hoje sua carcereira. Estava duplamente custodiado: por aquele carro e por si mesmo. Suas reflexões, remorsos e ressentimentos pareciam ganhar substância e peso a cada dia. Entulhavam-se na sua mente, obstruindo o caminho das ideias como a gordura nas veias. Não havia mais pensamentos claros; todos acabavam sujos, depois de tocados por sua infelicidade.

A separação fora o seu Tratado de Versalhes. Nele, entregou os sonhos e recebeu tristeza em troca. Ficou brabo. De que lhe adiantavam essas referências históricas agora? Mesmo assim, as recordações fluíram em flashes rápidos e cada uma delas lhe apontava um dedo, aumentando o placar da sua culpa. Viu-se deitado no sofá-cama do quitinete que dividia com os dois dos melhores-amigos-para-toda-a-vida, com os quais não falava há anos, tendo conversas alucinógenas sobre o futuro. O apartamento do qual ele só saiu quando foi admitido na sua primeira escola e quando Dora − a cobiçada morena da faculdade de economia, que a cursava com uma sommelier de cadeiras, provando apenas uma ou duas por semestre para não perder o paladar ou embriagar-se de conhecimento − aceitou a sua proposta para morarem juntos, contra todas as possibilidades.

Aquele futuro traduziu-se em um banco de carro, onde permanecia mais de quatorze horas diárias, sob o comando de algum ser imaterial, que comunicava as suas ordens por meio do aparelho celular.

Seu conhecimento de História atualmente servia, no máximo, para entreter um ou outro passageiro com passagens engraçadas, como a de Rainha Maria, a Louca, gritando da sua carruagem, na debandada da família de real portuguesa para o Brasil: “devagar, senão vão a pensar que estamos a fugir!”.

O rapaz saiu como entrou, sem lhe dirigir um olhar.

— xxx —

Ele cerrou os dentes. A dor que sentia no lado esquerdo do peito deu uma pequena pontada, irradiando-se pelas costas. Ela às vezes mandava esses avisos, para não ser esquecida.

— EU NÃO VOU PAGAR MAIS DO QUE UM E DEZ!

Naquele ambiente fechado, sentia como se o grito viesse de um megafone posicionado dentro do seu crânio. Os berros contra o telefone sucediam-se desde o começo da corrida. A pontada no peito deu as mãos a uma crescente dor de cabeça. Pensar na mancha misteriosa, que somente o médico conseguia enxergar na confusa e borrada chapa de raio-x, deixava-o ansioso. Poderia não ser nada. Poderia ser muito. Era um problema presente, com revelações marcadas para um futuro distante. Novos exames seriam realizados dali a dois meses. Estava na fila.

— Tu não disse que ele PEDIA UM E DEZ, IMBECIL?

Seus dedos crisparam no entorno do volante, até as juntas ficarem brancas. O passageiro estava integralmente concentrado na sua raiva e não percebia a dele. Focou-se no seu problema. Tinha parado de fumar há dez anos, mais ou menos, quando Luiz nasceu. Não poderia ser consequência do cigarro. Ou poderia? O médico não quis lhe adiantar nada. Queria mais exames. Procurou tranquilizá-lo, mas a voz dele não transmitia tranquilidade. Isso era o mais perturbador. A contradição que percebeu no médico. Ou seria tudo a sua imaginação?

— Porra, claro que não! VOCÊ É MUITO BURRO!

Conteve o ímpeto de parar o carro. Olhou pelo retrovisor. Uma grossa corrente de ouro destacava-se em meio a camisa com botões abertos, no peito inflado pela musculação. Lembrou um vídeo que recebeu pelo Whatsapp, onde centenas de pessoas imitavam um enorme coach de vendas, dando urros e batendo no peito, sobre a legenda “reprogramação quântica e mindset para ganhar autoconfiança, tornar-se um vencedor e alavancar vendas”.

— UM E DEZ! — O telefone foi jogado no banco de trás.
Ao menos, o tormento daquela ligação havia acabado. Seguiu-se uma deliciosa quietude, até o homem falar para ele, em tom de desabafo.

— Empregados. Só nos fodem. Raça desgraçada.

Os olhos se encontraram no minúsculo retângulo do retrovisor.

— É um país de merda para gente como nós.

Os dedos esganaram novamente a direção. Acelerou, como que querendo fugir dali. O carro e tudo o que estava dentro o acompanharam, contudo.

— xxx —

Ele olhou para o relógio, indeciso. A corrida era boa e o dia havia sido fraco. O mês estava sendo fraco. O jogo do filho começaria dali a meia hora. O chamado para a corrida continuava piscando. Não era um pedido que tivesse resposta imediata. Conforme seus colegas diziam, corridas que começam no Bom Jesus tinham grande chance de acabar no céu. Se corresse, daria tempo. Não precisava chegar bem no início do jogo. Aceitou.

A grande aba do boné colorido tapava quase que inteiramente o rosto. Era jovem, mas não conseguiu definir a idade. A enorme camisa de algum time americano evidenciava a sua magreza. Trazia uma mochila preta e discreta, que destoava do conjunto.

Quando parou na primeira sinaleira, uma voz fina disse no seu ouvido.

— Parça, na tranquilidade. — Sentiu a ponta gelada e de um cano de metal pescoço, do outro lado. — Leva essa coisinha aqui, nesse endereço. — O passageiro depositou o que parecia um tijolo embrulhado no banco do carona. Depois, enfiou um papel no bolso do peito da camisa. — Entrega pro Tiago. Tiago, hein? Entendeu, tio? Ti? Parece lesado, não fala nada!

Ele balançou a cabeça, em uma afirmação muda.

— Então. Se fizer direitinho, vai ganhar cinco estrelas e gorjeta. Não tem segredo. Agora — o cano pressionou mais o seu pescoço — se der ruim, caiu a tua casa. Temos o teu nome direitinho, placa, fotinho e pá. Aliás, puta foto feia. Fica esperto. Entendeu tudo? — A cabeça fez outro sim. O garoto deu dois tapas no bolso onde tinha colocado o papel, abriu a porta e saiu caminhando na direção oposta a que estavam indo.

Ele tremia de medo e raiva. Aceitou a corrida contra os seus instintos e agora era um refém solitário dentro do próprio carro. Com dedos vacilantes, tirou o papel do bolso e leu o endereço. Era em Canoas. Conteve a respiração e seguiu para lá. Sequer olhava para o embrulho ao seu lado.

Tiago revelou-se um homem no início dos trinta anos, com uma gravata solta e colarinho aberto. Esperava-o ansioso na porta de um prédio comercial e lhe ofereceu uma nota de dez reais ao receber o embrulho. Fez questão de recusar. Afastou-se dali o mais rápido possível, sentindo-se mais aliviado a cada metro de distância. E então lembrou do filho. Tocado por uma nova urgência, acelerou.

O trânsito no final da tarde foi uma mão que o segurou sadicamente, largando-o só quando já era tarde demais. Ao chegar no ginásio da escola, ainda conseguiu falar com um dos amigos do filho, que lhe disse que Luiz já tinha ido embora para casa com o pai.

O “pai”. O atual marido de Dora. Tentou ligar para o filho, mas ele não atendeu. Mandou uma mensagem para ex-mulher, mas ela leu e não respondeu. Ficou perdido, sentado na arquibancada, olhando a quadra vazia. Afora a pontada no lado direito, sentia apenas um cansaço extremo.

Na sua mão, o celular vibrou, comandando outra corrida.

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Arte: ANAMATRA

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