Ironia

Ironia

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Ele gesticulava com movimentos amplos. Uma mão segurava o copo, que lutava bravamente para não derrubar a cerveja. A outra parou com um dedo apontado na minha direção.

— Tu não acha ele o pior governante de todos — fez uma pausa dramática e voltou quase gritando — DE TODOS.

Apenas esperava a minha confirmação, para continuar o seu discurso. Os demais, no círculo ao redor, acompanhavam com interesse. Curiosos mais na minha reação do que com as ideias do meu interlocutor. Eles já o conheciam. Eu era quase um estranho. Por isso, ele me escolhera como a vítima da vez.

É interessante que você pode concordar com o que uma pessoa está afirmando, mas antagonizar somente pela forma como ela diz aquilo. Quando você percebe, está discutindo por mera antipatia, defendendo inclusive algo em que sequer acredita.

Mas voltamos ao círculo, onde esperavam a minha resposta. Naquele momento, cometi um erro. Resolvi ser irônico.

— Eu acho esse governo maravilhoso.

O meu interlocutor ia começar uma frase, quando uma inquietação rasgou o seu ar professoral ao meio. Olhos que flertavam com o ódio lançaram-se na minha direção.

— Como assim! Esse governo é horroroso. Você viu agora esse… — E daí passou a discorrer longamente sobre os malfeitos óbvios que imagina me passarem despercebidos.

Usar a ironia é sempre um risco. Você diz algo, mas está afirmando o contrário. Ela exige atenção de quem recebe a mensagem. Mais do que isso. Exige capacidade de interpretação e, no mais das vezes, humor.

Para o escritor, a ironia é ainda mais perigosa. Em uma conversa, conseguimos fazer gestos e expressões, que podem sublinhar o verdadeiro significado do que dizemos. A escrita não permite esses subterfúgios.

E ali, enquanto o interlocutor espaçoso tornava o meu ar rarefeito com a sua longa divagação, ocorreu-me que uma das maiores vítimas dessa sociedade que construímos nos últimos anos foi a ironia.

Ela jaz semimorta, estendida em algum lugar por esse caminho árido que percorremos. Definhou até o esgotamento, provavelmente por inanição. Quem pode alimentar a ironia em um mundo onde todos são A ou B? A ironia não vive no preto ou branco; habita o cinza e é adubada pelas inteligências de quem manda e de quem recebe a mensagem.

Meu interlocutor continuava a falar, seriamente enamorado pela própria voz. Minha mente vagava. Talvez eu não estivesse sendo totalmente acurado na minha conclusão. Há um filhote da ironia que viceja – o sarcasmo.

O sarcasmo é a ironia com maldade. É aquela que utilizamos para ofender e humilhar. Ao contrário da graça e da jovialidade, maldade é uma mercadoria que está sobrando no nosso mercado do cotidiano. Ele somente não se espalhou como uma erva daninha, pois também exige alguma capacidade de raciocínio. Ou seja, mesmo essa névoa de ignorância que atravessamos tem algum efeito positivo.

Fui despertado dos meus devaneios, quando o dedo voltou a apontar para mim. Tinha perdido o fio da meada, mas aquele súbito silêncio e a posição de todos ao redor deixavam claro que era esperada uma resposta minha.

— Você me convenceu. — Falei, com o melhor dos meus sorrisos.

Pensei esperançoso que, enquanto alguém se lembrar dela, talvez a ironia sobreviva para se refestelar em tempos melhores.

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