Uma pergunta rotineira em conversas informais, quando alguém descobre que sou juiz, é se as partes e as testemunhas mentem muito nos processos. Eu respondia que sim, mentiam, assim como todos nós.
Há algumas semanas, ocorreu um caso típico. Uma parte das partes não compareceu a uma audiência e seu advogado apresentou um atestado indicando que ela estava gravemente doente. Dias depois, vieram para o processo fotos, obtidas na internet, do suposto enfermo em uma festa no dia da audiência. Bebia e ria abraçado a outras pessoas.
O que é ou não a verdade, na maioria dos casos, nos remete a uma discussão filosófica. Como não se julgam equações matemáticas, muito do que se diz em um processo não pode, de forma simples, ser conceituado como verdade ou mentira. Afirmações sobre sentimentos, crenças, ideologias ou outros conceitos abstratos não se submetem a esse código binário de certo ou errado.
A afirmação a seguir parece uma dessas que você encontra em livros de autoajuda e que revelam grandes segredos: a verdade está nas coisas simples. Fatos, em sua maioria.
A verdade é tão traiçoeira que os próprios fatos que vivenciamos podem ter sido compreendidos ou memorizados de forma equivocada. A visão, a audição, o tato e os demais sentidos são filtros entre o que ocorre e o que é enviado para o nosso cérebro. Quando o cérebro recebe essa tradução, ele faz a sua interpretação do fato e registra o resultado na nossa memória. E a memória, com tempo, pode ficar imprecisa. Ou seja, esse um mecanismo cheio de possíveis erros.
Mesmo com todas essas ressalvas, noto que entramos em uma época de banalização da mentira.
Essa semana, perguntei a uma testemunha se ela era amiga íntima de uma das partes. A testemunha era uma senhora bem-apessoada, tranquila e articulada. Negou veementemente. Por insistência de uma advogada, perguntei se ela e a parte eram amigas em uma rede social, mesmo achando que isso não demonstraria amizade íntima. Ela novamente negou, sem titubear. Achei aquilo estranho. É um fato corriqueiro manter relacionamentos virtuais com nossos conhecidos de trabalho. Eu insisti, perguntando se ela tinha certeza. Ela manteve sua negativa. Na mesma hora, busquei o perfil da senhora na internet e vi que a parte constava na sua relação de amigos.
Já na sequência, perguntei o motivo da mentira, ao que ela me respondeu que achava que seria impedida de depor se assumisse que tinha algum relacionamento com a parte.
Não esboçou qualquer reação. Não ficou constrangida, vermelha ou mostrou desassossego por ter mentido e sido desmascarada publicamente.
Episódios como este sempre ocorreram. A diferença é que estão cada vez mais frequentes. Pior. O mentiroso cada vez demonstra menos vergonha ou arrependimento ao ser descoberto e exposto.
Em um livro excelente sobre o julgamento de um criminoso de guerra nazista, a filósofa Hannah Arendt trata do conceito da banalidade do mal. Correndo o risco quase certo de errar ao reduzir obras inteiras em uma frase, afirmo que, para ela, a massificação de certas condutas, por piores que sejam, torna-as a salvo de julgamento morais. Essas condutas passam a ser aceitas como cotidianas e a sociedade deixa de refletir criticamente sobre elas.
Adaptando o conceito, vejo que vivemos um tempo da banalização da mentira. Por quê?
A primeira resposta que me ocorre é estarmos em uma fase de transição entre uma vida aprisionada à realidade e uma virtual, onde podemos nos recriar e recriar o universo ao nosso redor. Esse novo palco sem amarras, deixa-nos, também, sem referências. Nossa verdade está deixando de ser vinculada apenas a fatos que vivenciamos e está compreendendo fatos que imaginamos. Estes fatos são verdadeiros para quem os inventa, mas são mentirosos para os demais.
Essa transição facilita, também, a mentira pura e simples. Projetamos na nossa vida virtual a vida real que gostaríamos de ter e tentamos fazer com que os outros acreditem nessa lorota. Praticamente ninguém qualifica aquele sorriso, aquela energia, aquele bom-humor e aquela sabedoria nas postagens em redes sociais como mentiras cuidadosamente produzidas, mas grande parte delas não passa disso.
Indo um pouco mais além, acredito que caminhamos a passos largos para uma sociedade em que mentir em proveito próprio ou de quem se gosta é normal e, até mesmo, esperado. Em uma comunidade na qual todos são egoístas, ninguém é reprimido por colocar os seus interesses acima dos demais. Não há vergonha onde não há julgamento moral.
A impunidade também faz parte dessa balança de banalização da mentira. Mesmo em ocasiões solenes, como uma audiência, mentir não acarreta praticamente nenhuma consequência para o intrujão. Aliás, não poucas vezes ouvi de advogados indignados que seu cliente “pode, sim, mentir” em seu proveito.
Todos mentimos, não sejamos moralistas. Uns mais, outros menos. Eu, pelo menos, envergonho-me.
E você?