A certeza é um privilégio da ignorância.

A certeza é um privilégio da ignorância.

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Muitos anos atrás, ocorreu uma discussão em uma das associações das quais participo. Como em qualquer ambiente político, elas acabam sempre surgindo. Os dois grupos eram liderados por figuras emblemáticas e a discussão se tornou pública, com textos encaminhados de lado a lado.

Em determinado momento, uma dessas figuras enviou uma carta (sim, era uma discussão pré-correio eletrônico) afirmando que tinha certeza daquilo que estava fazendo. E, então, veio a resposta emblemática. O oponente disse que o problema era exatamente este: a convicção. Ele tinha medo das pessoas com certezas inabaláveis.

O homem firmemente convicto desconecta-se da realidade. Se ela não se apresenta como ele quer, ele a distorce para que caiba no pequeno e confortável mundo de ideias engessadas onde vive.

A terra já foi plana. Depois, o sol girava ao redor dela. O rei era um escolhido de Deus. Esse Deus, aliás, tinha escolhido a vida do fiel como camponês subnutrido e ignorante. O homem não tinha qualquer parentesco com o macaco. Dependendo da época de nascimento, essas teriam sido suas verdades.

Um professor de português que tive, ao corrigir uma redação, ouviu do aluno: “Eu tinha certeza que se escrevia assim”. Ele, então, riu e respondeu: “Esse foi o problema. Se tivesse dúvida, tinha procurado no dicionário e acertado. Geralmente erramos quando não temos dúvida”.

Os maiores erros da humanidade foram cometidos com raízes firmemente assentadas na convicção, na verdade inquestionável e naquilo que era evidente. Ideologias são criadas e manipuladas com base na certeza. A certeza é a terra firme e fértil onde germinam as ditaduras. Sobre ela, depois, é jogado o concreto da repressão e do medo.

Um homem com uma crença inabalável é um joguete nas mãos de qualquer um que saiba direcioná-lo. É capaz de matar dezenas de outros, convicto de que está cumprindo uma missão de amor.

É de Sócrates, que mencionei em uma crônica semanas atrás, a frase e que está, em grego, no título desta crônica: Só sei que nada sei. Ele acreditava que isso o colocava um degrau acima das demais pessoas. E eu tenho convicção que sim.

Tenho convicção?

É da essência da nossa evolução um questionamento constante sobre aquilo em que acreditamos. Claro, não se pode cair no estremo oposto, uma vida sem ideias ou opiniões. O vácuo de raciocínio também nos transforma em marionetes.

A matéria-prima para a construção daquilo que seremos amanhã surge do entrechoque e da reflexão acerca do que acreditamos, do que vivemos e do que aprendemos.

O uso da razão é uma ferramenta poderosa demais para que nos conformemos em virar simples monólitos marcando a cova de ideias sobre as quais não se pode tocar.

Quando era mais novo, gostava de ouvir o jornalista Paulo Francis. Ele me irritava profundamente. Como emitia opiniões sobre tudo, constantemente caía em contradição e era alvo de acusações por parte de seus interlocutores. Mas ele respondia, impávido: “Não tenho compromisso com os meus erros”. Meu “eu” jovem vibrava com aquela confissão de erro. Hoje, aparadas as pontas agudas da juventude pelo sopro constante da areia do tempo, percebo o que ele efetivamente queria dizer. A reflexão o fazia evoluir. Sair da casca das antigas convicções, abandonando aquelas que não mais lhe pareciam adequadas e virando um outro animal. Um processo constante de transformação onde a graça não está no lugar da chegada, mas sim próprio no desenvolvimento.

As nossas certezas, quando “inabaláveis”, são celas que construímos para nós mesmos. Podem ser amplas. Podem trazer a sensação de conforto e de proteção. Mas nos impedem de ver o que há além delas. Em algum momento, nos tornam tacanhos e preconceituosos.

Derrube essas paredes.

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