A criança com fome

A criança com fome

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De quem é a culpa da criança com fome?

É dos pais. Essa é a nossa resposta instintiva. Somos mamíferos. Nosso próprio corpo gera o primeiro alimento das nossas crianças. Um mamífero que não cuida dos filhos nega a sua natureza. O pequeno maltrapilho, carregando a caixa de balas, aparece em alguma sinaleira, e já pensamos “onde estão os pais dessa criança?” Olhamos em volta, procurando os culpados.

A culpa é dos pais.

Mas quem cuidou dos pais?

Pais já foram crianças. Talvez o legado que tenham recebido foi aquela caixa de balas que agora transferem aos filhos. Há um ditado popular que diz algo parecido com “você somente pode dar o que tem”. O que tinham os pais dessa criança para lhe dar. Educação? Dinheiro? Presença? Exemplo? E os avós?

Os tempos são de poucos consensos. Acredito, contudo, que nisso a maioria concordaria comigo – ninguém é miserável por opção.

Há milhares de teorias que explicam, ou tentam explicar, o motivo de o seu filho estar dentro do carro e aquela criança estar na sinaleira. Algumas, preconceituosas e racistas, voltaram à moda. Essas não explicam. Servem tão somente para deixar claro que seus seguidores são pessoas moralmente doentes. Outras (muitas) concedem ares acadêmicos à nossa omissão. Justificam o fato de nada fazermos, de efetivo, enquanto sociedade, para retirar todas essas crianças da rua.

Uma dessas teorias é bem conhecida – a meritocracia. Vamos aplicá-la ao nosso exemplo. Há duas maneiras de equiparar as crianças e garantir que possam competir iguais: ou colocamos ambas dentro carro ou as duas fora dele. Ou seja, ou damos às duas condições mínimas de alimentação, educação, proteção e afeto ou as jogamos embaixo na sinaleira, com a caixa na mão. Pela meritocracia, não precisamos nos preocupar. A melhor, ao final, preponderará, fortalecida pelas dificuldades. A outra merecia seja lá o que lhe ocorrer.

Essas teorias não passam de muros mentais. Elas nos confortam e impedem uma visão crua do mundo. Permitem que pisemos no acelerador em direção aos pequenos problemas do cotidiano, abandonando aquela criança sem remorso.

Quando os europeus passaram a colonizar o mundo, diversas teorias foram criadas para justificar o extermínio ou escravização de populações inteiras. Com isso, podiam dormir tranquilos ao final da noite, satisfeitos por estarem cumprindo algum desígnio divino, científico ou econômico.

O esconde-esconde de insensibilidade é um jogo que treinamos juntos, como sociedade, há milênios.

De quem é a culpa da criança com fome?

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