A cigarra passou o verão cantando, enquanto a formiga juntava seus grãos.
Quando chegou o inverno, a cigarra veio à casa da formiga para pedir que lhe desse o que comer.
A formiga então perguntou a ela:
— E o que é que você fez durante todo o verão?
— Durante o verão eu cantei — disse a cigarra.
E a formiga respondeu:
— Muito bem, pois agora dance!
(versão de Ruth Rocha)
Provavelmente todos conhecem A Fábula da Cigarra e da Formiga. Ela é simples e possui um profundo sentido moral ligado ao valor do trabalho. A história, em suas várias versões, tem aproximadamente 2.500 anos, sendo inicialmente atribuída a Esopo, um escravo Grego que morreu em Delfos.
O Brasil, contudo, desafia os conceitos de simplicidade e de moral. Nossa realidade incrível exige um esforço enorme da ficção. Não é fácil escrever no Brasil, quando o leitor tem à sua disposição, todos os dias, por exemplo, o noticiário de política. Fantasia, mistério, drama, romance… Tudo ali, nas formas mais incríveis.
Mas, com esforço, tentamos. E aí vai a tropicalização da famosa fábula.
A cigarra adorava cantar e dançar, desde criança. Mas sempre que começava a rebolar, seu pai pegava um fio de grama e lhe dava uma surra. Rezava alto enquanto fazia aquilo, para exorcizar do corpo verde o diabo vermelho que corrompia a juventude insectoide.
A Cigarra assim cresceu e virou uma trabalhadora. Todos os dias, ia à empresa e lá permanecia dez horas absolutamente infeliz. Era desatenta, frustrada e vivia levando broncas da sua chefe, a Formiga.
Os únicos momentos nos quais tinha alguma felicidade eram nas festas, onde todos pediam que cantasse e dançasse. Como centro das atrações, recebia olhares longos e interessados das borboletas. Dizia-se ser disso que a Formiga mais se ressentia. Daquele sucesso. Do talento.
Os carrapatos, que ficavam ali, chupando os restos do poder da Formiga, desmentiam. A chefe era um modelo para todos. Compenetrada, eficiente e produtiva. Focada em cumprir as metas e em acumular resultados.
E assim se passaram os anos. Muitos anos. Anos demais. Até que aposentadoria de todos estava chegando. A cigarra finalmente poderia cantar despreocupada, muito embora quase não tivesse mais voz e suas costas não a permitissem grandes passos de dança.
E foi então que chegou o grande Tamanduá-bandeira-amarela-previdenciário, enfiou a sua língua nas entranhas da empresa, sugou todos sem cerimônia e os levou para alimentar o Mercado.
Afinal, a vontade do Mercado está acima da vida de qualquer inseto.