A ficção é o novo normal

A ficção é o novo normal

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Você já deve ter visto várias ilustrações de alguém abrindo um livro e partindo para outro lugar. O meu próprio Instagram está cheio delas. Os livros sempre foram considerados portais. A capa era aberta, lia-se duas ou três linhas e pronto! O leitor era transportado para o mundo do autor. Havia um escapismo no ato de ler; a literatura era o caminho de fuga para o irreal.

Mas isso foi em uma outra época. Em um outro mundo. Em um outro Brasil.

Não percebemos a mudança. Ela não foi drástica. Moveu-se lentamente ao nosso redor, como uma ardilosa jiboia. Enroscou-nos dia a dia. Não recorreu à violência explícita. Preferiu o lento convencimento. O ludíbrio. Nos enganou e, depois, anestesiou. Contou com nossas pequenas aceitações. Nossos “deixa para lá” e “não vou me incomodar com isso”. Fez a sua magia com doses corretas de omissão, egoísmo e ignorância.

E foi assim que a ficção tomou o lugar da realidade.

Veja. Eu entendo a ficção. O dia a dia dela deveria ser aborrecido. Ficava lá, perdida na eternidade do mundo das ideias. Condenada a viver no ideal. Sendo construída e reconstruída incontáveis vezes, por cada sonhador da terra. Não era de se estranhar que quisesse algo diferente.

Talvez pelo seu recalque, talvez por refletir nossas elocubrações sinistras, ao tomar conta do real, ela não deixou por menos. Forjou uma distopia política, misturada com uma pandemia global, em meio a uma crise econômica. Por cima disso, jogou uma pitada de maldade, como uma bruxa rindo na beira do caldeirão. Isso tudo seria um livro pesado, daqueles que você lê sofrendo pelos personagens, por mais de mil páginas. Só que, ao contrário de antigamente, estamos vivendo esse livro. A vingança da ficção foi nos transformar em seus personagens.

Das muitas coisas imperdoáveis e inacreditáveis que nos ocorreram nestes últimos anos, a que direi pode lhe parecer sutil. Talvez até irrelevante e mesquinha. Aceito essa crítica. Para a minha vida, contudo, ela é central: a ficção roubou-me a ficção.

Hoje, o dever do escritor não é mais soltar a sua imaginação, pegar o leitor pela mão e levá-lo ao céu. Não. Temos que trazê-lo ao chão. A literatura já foi asas; hoje, deve ser âncora.

A ficção obrigou-me a escrever sobre a realidade. Logo ela, de onde sempre quis fugir. Obrigou-se a ressaltar em textos seguidos o que seria o normal. A louvar o ordinário. A descrever mundos nos quais as pessoas sabem que a Terra é redonda e que vacinas funcionam. Mundos nos quais as pessoas acreditam que é melhor ser tolerante e solidário. Onde não se louva quem ostenta armas como troféus. Onde a verdade tem valor superior à mentira. Mundos de oxigênio para todos.

A ficção obrigou-se a sonhar com a realidade.

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