“Duas coisas me enchem o ânimo de admiração e respeito […]: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.”
(Immanuel Kant. Crítica da Razão Pura.)
A frase está, também, em sua lápide.
No início de dezembro de 2016, um ciclone passou pela cidade de Florianópolis. Isso não é uma figura de linguagem, como as chamadas de jornais sensacionalista ao mencionarem que certa atriz ou jogador de futebol “abalou” algum lugar. O ciclone de que estou falando arrancou fileiras inteiras de postes de concreto, derrubou centenas de árvores, provocou deslizamento, fez mais de duzentas casas serem desocupadas e lançou a cidade na escuridão.
Ele chegou sorrateiro, de madrugada. O radar que poderia detectá-lo estava desligado. Não havia ninguém monitorando. Nenhum aviso foi emitido. Os barcos continuavam na água. Famílias dormiam em zonas de risco.
Ernani é um bombeiro. Um dos vinte que estavam de serviço naquela madrugada. Era o motorista de um dos caminhões de resgate que, de um momento para outro, passaram a receber dezenas de pedidos de socorro. No instante seguinte, centenas de pedidos.
E, no meio do caos, começaram as escolhas. Chamadas com risco de vida prevaleciam sobre chamadas com risco a patrimônio, mesmo que isso implicasse em deixar barcos de pesca afundarem e condenar algumas famílias à fome.
Ao atender uma das chamadas, subiram com o caminhão até a metade de um morro. O ponto mais alto que o veículo conseguia chegar. Fizeram o restante do trajeto a pé. Foram abordados por um homem transtornado e alcoolizado, que pedia ajuda para salvar a sua casa. Perguntaram sobre a família e ele respondeu que já estavam a caminho da casa de parentes. Ao inspecionarem a casa, que já estava parcialmente destruída, viram que uma parede de tijolos sustentava uma massa enorme de lama que escorrera pela encosta do morro. E o homem insistia em permanecer ali. Enquanto tentavam convencê-lo, ouviram um estrondo. A parede ruiu. A lama varreu o que restou da casa. Por sorte, Ernani e um colega conseguiram agarrar o morador e se atirar em um platô, que permaneceu a salvo do deslizamento. Um metro a mais, um instante a mais e este texto seria um obituário.
Toda a ajuda disponível foi chamada. Grande parte dos bombeiros de folga, contudo, estava em outra cidade. Os homens tinham viajado para assistir ao chocante velório do time da chapecoense. As desgraças davam as mãos naquela madrugada.
Seu turno acabou, mas Ernani resolveu permanecer no trabalho. Como dar às costas ao dever. O caminhão estragou. Colocaram os materiais essenciais em uma caminhonete e continuaram o trabalho.
Então, ele recebeu uma ligação direta em seu celular. Era o seu irmão, de 22 anos, que dormia em casa. O telhado havia voado. Inteiro. Seu irmão estava lá, sozinho, tentando salvar o que podia da chuva inclemente. Havia caído na escada, transportando os objetos. Pedia ajuda.
O que você faria?
Largaria o serviço e iria para casa, onde seu irmão corria risco e onde tudo o que você construiu corria o risco de se perder?
Eu vou lhe dizer o que Ernani fez.
Perguntou se o irmão estava muito machucado, ao que ele respondeu não. Mandou-o, então, permanecer embaixo da laje do primeiro andar da casa e deixar que os bens se perdessem. E voltou ao trabalho. Preferiu auxiliar dezenas de outras pessoas do que cuidar da sua casa. Era o seu dever.
Essa é uma história verídica.
Ernani, o nosso bombeiro, passa despercebido na multidão. É um homem que colocou o sentimento de dever e de solidariedade acima de interesses pessoais, mesmo quando era perfeitamente aceitável que não o fizesse.
Pouco se fala destes homens.
Alguns acham conceitos filosóficos chatos e sem utilidade. Eu, confesso, gosto de diversos deles. Para mim, servem ora como microscópios, ora como lunetas e ora como a água que você joga para deixar escoar a sujeira e revelar o que estava debaixo dela.
Kant era (e ainda é) um filósofo complexo. Alguns dizem que somente pode ser corretamente entendido por quem fala alemão. Mas, enfim, qualquer coisa escrita nas longas palavras aglutinadas alemãs parece complexa.
Ele tem um conceito que eu gosto bastante, chamado de “imperativo categórico”. Vou correr todos os riscos do mundo ao simplificá-lo dessa forma. Se você acha que uma lei moral deve ser aplicada a toda a humanidade, você deve segui-la. Se você acha que todos deveriam agir de certa maneira em determinada situação, você tem o dever de fazer o mesmo. Ninguém precisa lhe dizer para fazê-lo. É um comando interno. Um imperativo interior.
Ernani atendeu e este imperativo.
Com mais homens como ele, o mundo seria um lugar melhor para se viver.