Ciúme

Ciúme

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Para variar, naquele dia ela resolveu voltar para casa pelo meio do parque, aproveitando o dia ensolarado. O choque de vê-lo beijando outra, uma desconhecida, no topo da escadaria, quase a fez parar.

Varou dentro dela um ar frio, soprado pelo abandono e pela ausência. Do frio, fez-se o fogo do ódio. Menos de um mês depois de terminarem, ele estava ali, perto da sua casa, beijando aquela putinha-branquela-esquálida, fosse ela quem fosse.

Ele a viu quando era tarde demais. Merda! Quem ia ao parque naquela hora? Ela não tinha inglês às quartas à tarde? Não se lembrava. Continuava beijando, com a boca agora um pouco mole, por causa da falta de concentração. Sua parceira estranhou a mudança na qualidade do beijo e tentou retirar o rosto, mas ele apertou o abraço. Sua ex não podia perceber que ele também a vira.

A ex não entendia direito o conceito de “ex”. Ele também não se esforçava muito para explicá-lo. Gostava das coisas assim, em zona de indefinição, em que tudo o que fizesse, inclusive eventualmente procurá-la, podia ser justificado.

Não sairia correndo. Ou sairia? Não! Aguentaria firme o provável escândalo. Ali, pelo menos, a não ser pela plateia de quero-queros, não existiriam outras testemunhas. Ao contrário daquela noite, em frente a um bar, quando tomou um tapa da ex. Na sequência, tomou outro da guria que estava beijando, em solidariedade a outra, sob a acusação de ele ser um traidor.

Surpreendentemente, ela passou e sumiu.

Sem compreender, depois de alguns minutos, ele relaxou, concentrando-se apenas no que estava fazendo. Foi quando o seu mundo rodou, virando uma bola de dor, pernas, poeira, rodas, cabelos e braços.
Ao final, ele, sua nova parceira, sua ex e a bicicleta que ela arremessara contra as costas do casal jaziam no chão, aos pés da escadaria. A ex levantou, pegou o que sobrara da bicicleta e saiu pedalando. Coube a ele explicar o que tinha acontecido e acompanhar a menina assustada, suja e mancando até a casa dela, enquanto a ex fazia aparições ocasionais, rodeando-os com a bicicleta, apontando a mão em forma de revólver, fingindo um tiro e assoprando a fumaça imaginária do cano.

Acreditem ou não, conheço os personagens dessa história.
Muito se fala no poder do amor. O poder do ciúme é subestimado.
O próprio inferno, meus amigos, foi criado pelo ciúme. Lúcifer teve ciúme de Cristo, teve ciúme dos homens (era um baita invejoso) e foi expulso do céu.

Quem já não conviveu com aquele casal que pode transformar uma noite agradável em uma batalha campal pela simples lembrança de algum fato envolvendo um namorado perdido no tempo? Ou por um suposto olhar para alguém do sexo oposto? Aquele casal que é convidado apenas para se ter algo sobre o que falar (mal), caso acabem os demais assuntos.

Os amantes ciumentos são vigilantes. Estão sempre à cata de algo que lhes permita comprovar a infidelidade alheia. São, também, exibicionistas. Não se contentam em manter para eles o inferno da sua insegurança, precisam que todos saibam das suas razões e concordem com elas. E são paladinos do amor. O ciúme, dizem com voz de sabedoria, é uma demonstração de afeto. Ter ciúme é se importar.
Se você faz parte do inferno particular de alguém, procure locais sem chamas eternas.
Ou a bicicleta também vai passar por cima das suas costas algum dia.

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