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“Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e dois anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca.”
(André Gorz. Carta a D. – História de um amor)

Para quem trabalha, é casado e tem duas filhas, as migalhas de tempo sozinho e sem compromisso são joias que a vida joga em seu caminho. Você as vê, vibra e corre para pegá-las. Quando as tem na mão, muitas vezes sequer sabe o que fazer, de tão ansioso. Elas são prêmios com validade limitada. Ou você usa as imediatamente ou se desfazem no ar.

Esta semana, jogaram uma destas nos meus pés. Minha mulher me comunicou que iria a um jantar somente de amigas. E mais, levaria com ela a Júlia, nossa filha caçula. Eu teria, assim, a noite de sexta-feira livre. E, melhor, sem precisar pedir por isso e podendo fazer aquela cara de “ok, eu te libero nesta sexta, mas ficas me devendo uma – não esquece, hein?”.

Nesta altura, você deve estar pensando que eu queria festa, bebida e suas, digamos, consequências. Não. Meus planos eram muito mais modestos. Ficar em casa. Tomar uma taça de vinho. Comer uma baguete regada a um bom azeite de oliva. Ainda estava indeciso entre assistir a um filme classe C, um terror daqueles horríveis em que o sangue é ketchup e o mostro é visivelmente de plástico, ou ler alguma coisa. Em paz, sem dever satisfação a ninguém.

Deixei as meninas na festa, retornei para casa e me sentei para degustar o sereno jantar. Ao olhar para o lado, mordendo um pedaço de baguete, vi que havia colocado a mesa para duas pessoas. Dois pratos, dois jogos de talheres e dois copos. Fiz isso sem me dar conta. Fiquei mastigando aquela baguete e pensando no motivo. Tomei um gole de vinho, para ajudar a lubrificar o caminho do pensamento. Havia sido um ato de adestramento condicionado. Como um cachorro que vai buscar o jornal. Mas ali havia mais. Havia uma simbologia. Naquele lugar vazio, conclui, enfim, havia o conforto do companheirismo e da cumplicidade. Não vou mentir. Mesmo que houvesse colocado a mesa apenas para mim, continuaria feliz por aquele momento isolado de todos. A baguete continuaria maravilhosamente crocante, mesmo embebida no azeite, cujo sabor explodia na minha boca. O vinho continuaria forte e saboroso, arranhando a garganta, como todo bom tannat uruguaio. Contudo, olhar para aquele lugar e saber que ele estaria preenchido nos próximos dias aumentou a minha sensação de bem-estar.

Imediatamente, recordei-me da longa carta, ou da pequena biografia, dependendo de como você a encarar, escrita por André Gorz para a sua mulher, Dorine, e cuja abertura escrevi no início dessa crônica.

André foi um dos grandes intelectuais deste século. Nasceu em Viena e, tendo pai judeu, fugiu do nazismo, acabando por fixar residência na França. A Carta a D. – História de um amor foi escrita em 2006, quando ele tinha oitenta e três anos e cuidava sozinho da mulher, que tinha um câncer terminal. É uma longa, sincera e comovente declaração de amor, que relata uma cumplicidade de quase sessenta anos. Uma cumplicidade que terminou de forma aparentemente trágica, pelo menos para quem não leu a Carta, com o suicídio de ambos no ano seguinte, 2007.

É uma leitura obrigatória e que, além de tudo, tem frases brilhantes (que eu queria ter escrito) como: “Com você, eu podia deixar de férias a minha realidade”.
Pularam na minha memória, ainda, vários outros exemplos interessantes. Citarei um, que une diversos temas, entre eles o feminismo, no qual milita a minha mulher. Cito-o em homenagem a ela, cuja ausência me inspirou (adoro um elogio dúbio).

Marie Curie foi a primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel, o de Física, em 1903. Não só isso, ganhou outro, de Química, em 1911 (sua filha também ganhou, mas isso é tema para outra crônica). Era genial, mas somente conseguiu trabalhar, ser mãe e esposa na sociedade patriarcal francesa com a cumplicidade do seu colega de pesquisa e marido, Pierre Curie. Indicado ao prêmio de 1903, Pierre recusou-se a recebê-lo se a contribuição da sua mulher não fosse reconhecida. Um companheirismo exemplar, que está imortalizado no elemento químico 96 da tabela periódica, o Cúrio, assim denominado em homenagem ao casal.

Se a minha última crônica foi sobre o sentimento da solidão e como não podemos nos deixar abater por ele, esta é sobre a companhia. Sobre como ela nos aquece e nos ajuda a atravessar a vida de forma mais leve.

Minha baguete acabou. Sorri e resolvi ir escrever.

Vá que elas voltassem antes e me atrapalhassem …

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