Danton

Danton

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A primeira coisa que você deve saber é que ele era gentil. Era como se tivessem aprisionado um monge em um corpo de mamute. (Um monge carnívoro, mas vocês pegaram a ideia.) E ele tinha que lidar a todo momento com esse conflito sem solução entre o seu corpanzil e sua delicadeza.

Vou tentar ilustrar. Você vinha caminhando e ele estava jogado na frente de uma porta, como uma barricada. Ao lhe ver, imediatamente tentava sair do caminho. Não queria atrapalhar. Mas eram dezenas de quilos de estabanação, que entravam em guerra com a gravidade. E, então, você ficava olhando aquela pequena ópera bufa de esforço, até que, de algum modo, ele se colocava de pé, olhava para você orgulhoso – como se tivesse desarmado uma bomba nuclear prestas a explodir – e encostava a cabeça na sua perna, mendigando um carinho. Obviamente, não havia como resistir àquele olhar pedinte.

O olhar. Todos já ouviram a frase de Edgar Allan Poe, que diz ser ele a janela para a alma. Danton não tinha janelas, tinha portões. Seu olhar era quase que uma declaração sentimentos. Você conseguia ver imediatamente o que ele estava passando. Em regra, sono e preguiça. Mas havia doçura. Felicidade, quase um sorriso, quando ele nos via chegar em casa. Medo, em tempestades, e mágoa, nas poucas vezes que brigamos com ele. Nunca vi raiva naquele olhar.

De certa forma, ele era um símbolo de várias coisas nas quais acreditamos. Carinho, amor, união, família, lar. Por pior que fosse o dia, por pior que outros tivessem sido ou por pior que tivéssemos sido com os outros, sabíamos que ele estaria lá para se encostar em nossas pernas e pedir carinho com sua pata, dando-nos alguma perspectiva das coisas que verdadeiramente importam.

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A maioria das imagens se dissolve com o tempo. Nessa altura da vida, eu já perdi em alguma gaveta da memória uma infinidade delas. Uma das que quero manter é essa: a casa sendo invadida por um bando de crianças, gritando, brincando e se jogando, como uma horda bárbara mirim, em direção aos cães. O que em regra seria um momento de tensão, pois cachorros geralmente não gostam de quadrilhas infantes que lhes tiram do sossego aos berros, puxando seus pelos e colocando a mão dentro das suas bocas, aqui era apenas um momento de diversão. Quando o mamute gentil se levantava, quase um palmo acima de algumas das crianças, eu sabia que o dano máximo seria derrubar alguma com uma rabada ou afogar outra em baba. E elas também. E se aproveitavam disso.

Mas o Danton virou uma ideia. Um sentimento. Uma saudade. Um vazio e um preenchimento. Virou as lágrimas que escorrem enquanto eu escrevo este parágrafo e o sorriso que dei no parágrafo acima.

Minha filha mais velha, que o teve ao seu lado praticamente por toda a vida, disse que nada a tinha preparado para esta dor. Filha, apenas a dor ensina como é doer. A possibilidade de perder é uma das cláusulas do pacto de amor, embora ninguém goste de a ler. O fim dói, mas quando ficamos velhos, vemos que o importante, mesmo, foi o caminho até ali. E o nosso caminho foi muito, muito legal.

No samba “O Meu Lugar”, Arlindo Cruz fala da Mangueira e de suas recordações afetuosas sobre o lugar e suas pessoas. Em um momento na letra, confessa: “o difícil é saber terminar”. Este é um texto que eu não queria escrever. E, depois que comecei, é um texto que eu não queria que terminasse.

A vida é assim. Ela não se importa com o que queremos. Mas mesmo assim continuaremos querendo, continuaremos amando e caminhando. E mesmo a vida, com sua insensibilidade, não pode nos impedir de fazer um cafuné no Danton, a qualquer hora que quisermos. É só visitá-lo naquele lugar quente que fica entre a imaginação e o nosso coração, onde ele mora agora.

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