Por volta de 1993, encontrei um amigo de faculdade, de madrugada, na rua. Nós dois nos abraçamos daquele jeito sincero que somente os bêbados fazem. Vinícius de Moraes, quando perguntado por que bebia, dizia que o whisky o transformava em uma pessoa melhor. Ao menos, naquela noite, comigo, isso foi verdade. Ali, no meio da rua, comemorando um título do Colorado, acabamos por combinar que iríamos colocar uma mochila nas costas e sair viajando. E, surpreendentemente, deu certo.
Era o tempo pré-celular. Então, passávamos isolados por quase um mês, telefonando uma vez por semana para casa e avisando que estávamos vivos. No restante do tempo, tratávamos de nos divertir e fazer um curso forçado de administração de orçamento. Hoje almoçamos ou vamos àquela festa? Lasanha pesa muito, não coloca no prato. Se dormirmos na praia, economizamos uma diária.
Em uma dessas viagens, quando estávamos num albergue em Santa Cruz de Cabrália, na Bahia, decidi que iria a um luau na praia do Parracho. Era uma daquelas decisões que tomamos somente quando jovens ou quando temos algum outro tipo de problema.
Para ir à festa, teria que (não se percam): tomar um ônibus de linha em Cabrália; ir até Porto Seguro; atravessar a cidade a pé; transpor o Rio Buranhém com uma balsa; pegar uma kombi até a praça da Igreja de Arraial D´Ajuda; caminhar até a praia de Mucugê; andar pela beira do mar até a praia do Parracho.
Naquela época, era uma decisão simples. Havia uma festa, ela seria boa, eu iria. Hoje, se fosse fazer a mesma coisa, levaria um cantil, um GPS e uma mochila. No mínimo.
Não me recordo exatamente o que ocorreu durante o luau. Lembro claramente, contudo, do que aconteceu depois. Quando o sol ameaçava raiar, eu obviamente estava cansado demais para iniciar a epopeia do deslocamento de volta. Por sugestão dos meus mais novos amigos de infância, que havia conhecido na festa, resolvemos dar uma caminhada pela praia até achar um lugar onde tomar café.
Vejam bem a insanidade dessa decisão. Estava indo na direção contrária a que eu deveria seguir para voltar à Cabrália, procurando um bar em uma costa deserta. Um local vendido como destino turístico exatamente por isso: não havia nada lá.
Depois de caminharmos um tempo indefinido e longo, surgiu uma construção de madeira, com dois andares, ao pé de uma falésia. Uma “barraca”, como diziam. Ela avançava na areia, postando-se de frente para o mar verde e parado como água de poço. Era rodeada por alguns coqueiros esparsos e pequenos, como se estivessem constrangidos por terem sido plantados ali. O lugar era deslumbrante em sua simplicidade. Vimos um movimento e resolvemos perguntar se a barraca estava abrindo.
Obviamente, não estava. Ninguém passava por ali naquela hora. O dono, entretanto, recebeu aquele bando de adolescentes cansados e insones com um largo sorriso e uma contagiante empolgação. Disse para sentarmos, que ele faria o café da manhã. Pão velho prensado e suco de abacaxi, olhando o sol erguer-se por sobre aquele mar de tranquilidade. Poucas vezes tomei um café tão bom.
Tudo isso para contar a história daquele dono de barraca.
Lá pelas tantas, ele puxou um binóculo e começou a esquadrinhar o mar. Eu, sempre curioso, perguntei o que estava procurando. Respondeu que costumava acordar àquela hora, pois geralmente conseguia ver algumas baleias-jubarte próximas à costa. Uma conversa leva à outra e ele me resumiu a sua história.
Tinha sido um consultor em São Paulo. Casas, carro, família e um estresse que alimentou carinhosamente até quase parar em definitivo o seu coração. Esse é o problema de se criar estresse. Ele é fiel. Resolveu, então, largar tudo. Pediu demissão, vendeu todos os seus bens e comprou aquela barraca.
Trouxe a mulher e duas filhas. Enquanto conversámos, uma chegou em um buggy, vindo do mesmo luau onde eu estava. A outra acordou e abriu uma das janelas de cima da construção. Ele comentou comigo que ela gostava de ficar um tempo na cama, olhando para o mar.
Aquele homem estava ali, sem energia elétrica, afora a de um pequeno gerador, vivia com pouquíssimo dinheiro e seu quintal era o oceano, que a cada movimento de maré lavava um pouco da sua alma.
De certo modo, ele passou a habitar o meu imaginário. Não sei o que ocorreu com ele e, sinceramente, não gostaria de saber. Prefiro-o assim, como um modelo. Um habitante real, mas ao mesmo tempo imaginário, das minhas férias. Uma representação da ideia de que podemos abrir mão e fugir, para nos encontrar.