Jair, o cidadão de bem otimista

Jair, o cidadão de bem otimista

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— Está tudo melhorando. E vai melhorar mais.

Jair abriu as duas mãos, como se mostrasse o mundo ao redor, e armou um grande sorriso. A casa de duas peças não via uma pintura fazia anos. Na junção das paredes com o teto à direita, uma infiltração ameaçava se tornar um problema estrutural. A convicção e o ar de superioridade dele me provocaram profunda irritação.

— Você está louco, Jair? — perguntei.

— Louco? Não! Tá melhorando mesmo. É que você não tem fé. — O sorriso se alargou.

— Fé? Olha bem para… — Fiquei com vergonha de falar mal da casa dele. — Você é que tem que olhar para o mundo! Abre esse celular e lê as notícias. — Falei e me arrependi. O celular dele era um modelo antigo. Acredito que nem acesso à internet tinha. Havia reclamado algumas vezes que o salário de vigia não permitia a troca. — Liga o rádio. Aliás, esquece. Não adianta ligar o rádio. Está tomado de pastores. Há pastores por tudo. Pastores deputados, prefeitos, governadores. Você levanta uma pedra e sai um dedo de pastor em tua direção, recitando algum salmo, enquanto a outra mão entra no teu bolso em busca da carteira.

— Isso! — Deu um tapa na mesa de plástico bamba, fazendo chacoalhar os copos de cerveja. — Homens de fé! Precisamos de mais homens de fé. Eles é que nos devem conduzir.

— Fé no quê? No lucro? Na polícia?

— Isso é uma coisa que precisamos! Mais polícia. Como esse negócio que estão fazendo no Rio de Janeiro. Chamar os militares para eles arrumarem a bagunça.

— Jair, militar não foi treinado para… —

Ele me interrompeu. O olhar estava levemente vidrado, empolgado com o tema.

— E tem que parar com essa história de soltar bandido. Se não tem mais cadeia para todo mundo, tem que matar. Para dar exemplo. E se o pessoal dos direitos humanos continuar a encher o saco, pode passar junto.

Dei um profundo suspiro. Não era o final de noite que eu queria. Conhecia o Jair fazia anos. Era um bom amigo. Um cara tranquilo, trabalhador e até mesmo divertido. Ajudou-me muito quando eu me separei. Mas, nos últimos tempos, quando falava de política, parecia que caiam os disjuntores do seu bom senso. Ou que era tomado por uma pomba-gira-militar.

— Escuta, e aquele papo de religião? Não entendi. Tu quer fé ou matança?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra! — Jair esboçou uma pequena fissura de raiva na sua máscara de superioridade, mas logo se controlou. Eu tinha que concordar com ele. Fé, muitas vezes, era traduzida em ódio, não em amor. — Ou tu acha que Jesus queria esse monte de ladrões, estupradores, homicidas andando soltos por aí?

— Olha, pelo o que me lembro, era principalmente para esses desajustados que ele pregava.

— Não fala bobagem! Tu não sabe nada da Bíblia.

Sacudi a cerveja choca no fundo do copo e tomei tudo de um gole só. — Bem, então é só isso? Colocar um monte de pastores no poder, fazer todo mundo rezar e matar todos os bandidos. Mais alguma coisa para o teu mundo perfeito?

Ele não percebeu a ironia e continuou.

— Tem umas outras coisas. Acabar com essa farra das “minorias”. Mulheres, negros, índios, pobres. Todo mundo hoje se acha o dono do mundo. É todo mundo igual! Esse pessoal quer sempre o atalho. Tem que trabalhar duro, como eu. Como tu, para ter alguma coisa.

Chega de ficar protegendo essa gente.

Jair era um moreno, quase mulato. Pobre, trabalhava doze horas por dia, cinco dias por semana. Tratava a mulher, que trabalhava tanto quanto ele, como uma rainha. O filho deles só entrou na faculdade por causa das cotas. Senti um impulso de agarrá-lo, levantá-lo e levá-lo para a frente de um espelho, mas me contive. Levantei a garrafa, mas não havia nada mais dentro dela.

— Vai melhorar. Você vai ver.

Eu continuei olhando fixo para ele, sem forças para argumentar. E ele me encarou, até gritar.

— Ah tá! Conheço essa cara! — Apontou um dedo para mim. — Agora tu vai começar com aquela bobageira do Hitler!

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