Você já ouviu falar em Kathrine Switzer? Não? Pois devia.
O domínio do homem sobre a mulher, até os anos 1960, era ostensivo. Não havia machismo. Havia a normalidade e ela pressupunha uma mulher submissa, cuidando do lar e das crianças. Exceções eram permitidas, mas apenas como confirmação das regras. Mulheres podiam trabalhar como professoras, secretárias, até mesmo como prostitutas. Sempre sob o controle ou supervisão de algum homem. Não havia igualdade possível e isso era lei. Literalmente. Nosso Código Civil de 1916, por exemplo, dizia de forma simples e direta que “o marido é o chefe da sociedade conjugal” (artigo 233).
Devemos aos “loucos” dos anos 1960 a mudança desse paradigma. Eles germinaram e fizeram crescer, junto às outras ervas que cultivavam, a cultura da igualdade. Eles moldaram, de muitas formas, os limites daquilo que consideramos inaceitável para viver em sociedade.
Entre esses “loucos”, estava Kathrine. Em 1967, com vinte anos, era apenas uma estudante universitária que desejava correr a maratona de Boston. O problema é que não existia na prova uma categoria feminina. Não se considerava que as mulheres, frágeis e delicadas, fossem capazes de terminar uma prova de corrida de 42 quilômetros.
Isso havia começado a mudar no ano anterior, quando Roberta Bingay Gibb havia “furado” uma prova e a completado, sem se inscrever. Kathrine deu o passo seguinte, inscreveu-se como K. V. Switzer, abreviação que já utilizava, e seu nome passou despercebido. Recebeu o número 261, que acabou por se tornar icônico, e foi para a prova.
A história se faz com ousadia, mas também com coincidências e sorte. Kathrine teve todos.
Logo no início da corrida, um diretor percebeu que havia uma mulher infiltrada na prova. Jock Semple era o seu nome e o imagino pensando: NA MINHA PROVA? UMA MULHER? JAMAIS SOB A MINHA GUARDA! Partiu, furioso, em direção a ela. Agarrou-a pelo ombro. Kathrine lembra o que ele gritou com expressão de ódio. “Dê o fora da minha prova e me dê estes números!”.
As pessoas, entre elas fotógrafos, notaram a estranha movimentação e registraram o ataque. Um homem transtornado tentando impedir uma mulher de, simplesmente, correr ao lado de outros homens e sendo controlado por outros colegas de gênero, mas não de ignorância – entre eles o namorado de Kathrine.
Estas fotos são um símbolo perfeito da explosão do movimento feminista nos anos 1960. Os raivosos, os medrosos, os ignorantes e os covardes tentando agarrar a mulher antes de ela conseguir se desprender e correr, livre, em direção àquilo que queria.
A ideia de Kathrine era apenas realizar um pequeno gesto, individual, de afirmação como mulher. Depois de quase ser agredida e sabendo que o episódio teria repercussão, a corrida para si mesma transformou-se em uma corrida para a história. Ela carregou isso nos ombros pelos mais de 42 quilômetros. Se se cansasse, se tivesse alguma contusão, se tivesse alguma câimbra e fosse obrigada a parar, a sua derrota seria utilizada como um exemplo de que as mulheres de fato não poderiam correr maratonas. O gesto de coragem seria transformado em uma derrota não só dela, como de todas as mulheres. Ela se tornaria um exemplo da incapacidade feminina.
Mas Kathrine suportou o desgaste da corrida e da responsabilidade por quatro horas e quarenta e quatro minutos, que a transportaram do anonimato para a memória afetiva daqueles que acreditam em uma sociedade melhor e mais igualitária.
Cinco anos depois, em 1972, foi permitida oficialmente a inscrição de mulheres na maratona de Boston. O número 261 foi aposentado, em homenagem Kathrine. Ela foi campeã da maratona de Nova York em 1974.
Em 2017, cinquenta anos depois e já com setenta anos de idade, correu novamente a maratona de Boston, festejada por todos e cercada de mulheres.
Se houvesse uma foto do que realmente acontecia ali, veriam que levava todas as corredoras pela mão.
“Get the hell out of my race and give me those numbers!”.