Nero, os índios e a burocratização da loucura

Nero, os índios e a burocratização da loucura

Download desta Crônica em PDF

Nero é uma figura controvertida. Imperador, louco, artista, devasso, assassino… Não se sabe ao certo onde termina o homem e começa a lenda. Em algum momento, você já ouviu o seu nome ou alguma das suas histórias. Se for “antigo” como eu, talvez até mesmo se lembre de Peter Ustinov interpretando-o no filme Quo Vadis. Tocava lira, enquanto Roma pegava fogo ao fundo.

O Imperador foi odiado pela elite romana. Cometeu suicídio depois de um golpe de estado. Ou seja, na sua época, não restaram muitos que falassem bem dele e, mais, registrassem isso. Esses escritos, caso existentes, caíram nas mãos dos cristãos. E os cristãos… Bem, eles não só o odiavam, mas o comparavam ao próprio Coisa Ruim. Há uma bem plausível tese de que o número da besta mencionado na Bíblia – 666 – venha da conversão do nome de Nero em numerais. Claramente, o Imperador não planejou bem o seu marketing pessoal.

Provavelmente era falsa a acusação de que Nero mandou atear fogo em Roma, pois a achava feia, queria reurbanizá-la e construir um novo e suntuoso palácio (como efetivamente acabou fazendo – o Domus Aurea). Não que se duvide da sua capacidade para fazer algo do tipo. Assassinou a própria mãe, depois de chegar ao poder na esteira de outros assassinatos cometidos por ela. Nero ainda assassinou o irmão no dia em que este atingiu a maioridade e matou a ex-mulher, entre outras pessoas.

Tenha o incêndio sido provocado ou acidental, ele devastou Roma no ano de 64 D.C., uma cidade de quase um milhão de habitantes. Milhares de pessoas morreram e outros muitos milhares ficaram desabrigados, em uma tragédia sem precedentes. Ao seu final, exigiam-se que fossem apontados culpados, tivessem culpa ou não.

Segundo as fontes históricas mais aceitas, os poucos membros de uma seita nova, sem poder político e com hábitos estranhos e tresloucados, que desafiavam os costumes pagãos, foram o alvo perfeito. Não é certo que esse grupo tivesse o mesmo nome na época, mas hoje seus membros são conhecidos como cristãos.

Cerca de 30 anos tinham passado desde que Pôncio Pilatos “lavou as mãos” e o profeta chamado, ironicamente, de Rei dos Judeus foi crucificado nos confins do mundo. Jerusalém era então um lugar desértico e desimportante para o Império. Não se sabia ao certo como a sua seita de seguidores havia chegado a Roma ou como conquistava novos adeptos. Certo é que eles não tinham simpatia (para não dizer que causavam ojeriza) entre os romanos.

E, assim, foi natural empurrar a culpa do incêndio para o colo desse pessoal estranho. Muitos deles imigrantes (sim, essa tradição de culpar imigrantes vem de longe), que não tinham o status de cidadãos romanos. Cristãos foram amarrados em longas estacas, embebidos em óleo e madeiras e usados como tochas vivas. Outros foram vestidos em peles de animais e largados no hipódromo para correr de cães caçadores e outras bestas. Muitos foram crucificados. A grande maioria foi simplesmente executada.

Vista com distanciamento histórico, é claro que os cristãos não tinham qualquer interesse em provocar incêndios. Desejavam apenas passar despercebidos e evangelizar discretamente o maior número de pessoas. A acusação seria tão delirante quanto, por exemplo, acusar índios de tocarem propositalmente fogo na floresta onde vivem a gerações e de onde tiram o seu sustento. A perseguição, por si só, demonstra a contaminação das instituições romanas e do próprio povo pela insanidade do seu líder.

Não foi a primeira vez ou a última, mas sem dúvida foi um dos melhores exemplos da burocratização da loucura.

Comentários