“A triste verdade é que os maiores males são praticados por
pessoas que nunca se decidiram pelo bem ou pelo mal.”
Ana Harendt
Imagine que está em casa, de noite, com sua mulher e seus dois filhos. Jantando. Sem aviso, a porta da rua vem abaixo. Sua mulher grita. Três homens uniformizados invadem a casa. Você se põe de pé, apenas para ganhar uma coronhada no rosto. Ao cair, dois dos invasores lhe pegam pelos braços e o arrastam para a rua. Sua mulher tenta se agarrar a você, mas é empurrada e cai sobre a mesa da sala. Você vê o rosto desesperado da sua filha antes de sair pela porta. É a última visão que terá dela.
Começando a se recuperar do golpe, você se pergunta o que é aquilo. Sente o gosto de sangue que escorre da testa para a sua boca. Você grita. Para onde está sendo levado? O que está acontecendo? Um dos homens que o carrega dá uma risada seca e diz com escárnio que você sabe o seu crime. Você é branco. Branco demais.
Poucas horas depois, você está em um campo de concentração de prisioneiros. O cabelo raspado e um roupão de lã crua, que será sua única vestimenta nos próximos meses. Você passará frio e fome. Não terá direito à higiene básica. Dormirá abraçado com estranhos, em catres de madeira, para tentar se aquecer. Ao final, quando estiver fraco demais para trabalhar, será morto como gado e incinerado.
Tudo isso, porque era branco, em um país que não aceita mais os brancos.
Troque o branco por evangélicos, cristãos, muçulmanos, testemunhas de Jeová, judeus, espíritas, homossexuais, ciganos… a lista não tem fim. O enredo da história continua o mesmo. A identificação das vítimas varia apenas de acordo com os interesses de quem está no poder.
Este mês, estive em Dachau, uma pequena cidade nos arredores de Munique, onde os nazistas construíram o seu primeiro campo de concentração, assim que assumiram poder, no ano de 1933. Chegou a “abrigar” mais de 200 mil presos. Naquele local, foram assassinadas mais 30 mil pessoas, em condições semelhantes às que imaginei acima. Isso, sem contar outras transferidas para outros campos, especializados em extermínios.
Na entrada do Campo, há um portão de ferro com os dizeres “Arbeit Macht Frei” [O Trabalho Liberta]. Uma ilusão para aqueles que ali entravam. Ou uma piada mórbida.
O lugar tem uma beleza desoladora. A área, enorme, é cercada por vegetação. Sua via principal, onde se alinham os pavilhões de madeiras que serviam para amontoar os prisioneiros, é margeada por grandes plátanos. Eles dançavam ao sabor do forte vento. Muito embora diversas excursões, principalmente de jovens alemães, caminhem por ali, não se ouve nenhum barulho, afora um ou outro grasnar dos corvos. Estive em cemitérios que pareciam festas comparados àquilo.
Há determinadas experiências que não podem ser traduzidas, sequer pela arte. Não há texto, pintura, vídeo ou foto que transmita a desolação de estar em um local como Dachau. Onde a morte de seres humano inocentes era praticada em escala industrial. Não há como descrever as sensações de repulsa e tristeza por ingressar em salas onde eram empilhados corpos, esperando a cremação; por ver de perto, na sala adjacente, um escoador de sangue em meio ao piso, como os existentes nos abatedouros de animais, onde eram mortos aqueles que insistiam em se agarrar à vida
Isto aconteceu há 70 anos, na Europa. Engana-se quem pensa que isso faz parte do nosso passado. Continua ocorrendo, por todo o globo, com base nas mais variadas justificativas e preconceitos. Via de regra, é praticada como política de governo, por soldados e burocratas que estão cumprindo ordens.
Qualquer ideia política ou religiosa que pregue a segregação é semente de uma nova Dachau. E como ervas-daninhas, elas crescem ao nosso redor. Basta descuidar um pouco do frágil jardim da civilidade e elas tomam conta.
O Brasil de hoje dá claras amostras de que os jardineiros, nós mesmos, estão cansados e desatentos. Não arrancamos mais os frutos da intolerância com a frequência exigida.
E o mal viceja.
Amanhã pode ser a sua porta a ser derrubada.