Download desta crônica em PDF »
A morte veio para me visitar em uma noite de inverno, em meados de 2008. Era madrugada, depois de uma festa, mas estava sóbrio e hiperhidratado. Havia entrado em vigor a Lei Seca e me obriguei a apenas assistir aos meus amigos beberem, enquanto tentava acompanhar suas linhas de raciocínio, cada vez mais intrincadas.
Quando dobrei com o carro na minha rua, vi que outro me seguiu. Moro em uma rua pequena, praticamente sem trânsito. Desconfiado, parei no meio-fio, em frente à minha casa, mas não abri o portão da garagem. Fiquei pronto para partir ao menor sinal de perigo. O carro passou e embicou na frente do meu, impedindo minha fuga. Olhei para o lado e já havia uma arma a menos de um metro do rosto da minha mulher.
Descemos do nosso carro. Confusão. Outro carro com assaltantes estacionou. Quando vi, estávamos cercados por seis, quase todos com armas na mão. Alguém mandou minha mulher entrar novamente no carro. Aquilo eu não poderia deixar acontecer. Voltei para dentro dele, já no banco de trás, e fechei a porta. Mais confusão. Eles não sabiam direito o que fazer e aquele carnaval estava demorando demais. Por fim, dois entraram no meu carro e partimos. Três carros. Sete pessoas. Eu na carona de um deles. Quase um cortejo.
Minha rua, além de pequena, é torta; ela faz um cotovelo para direita. Quando entramos nele, vi o guarda da rua escondido atrás de um contêiner de lixo. Por um instante, ele me encarou, com olhos absolutamente assustados. Tive pena. Ele não poderia fazer nada naquela situação. Se tivesse feito, provavelmente esta crônica seria psicografada.
Pode parecer incrível, mas a minha sensação, quando partiu o carro, beirava o alívio. Minha mulher ficou. Ninguém entrou em casa, onde a minha filha de quatro anos dormia com a babá. Imaginei aquela gangue dentro da nossa casa. Seria o cenário do inferno. Agora, restava somente eu. Ou seja, tinha muito menos gente para me preocupar.
Lembro que mantivemos uma conversa meio surreal. Eles perguntando se o carro tinha bloqueio por satélite. Eu respondendo não, mas que tinha no porta-malas uma raquete de tênis, comprada naquele mesmo dia de segunda mão.
E, então, a morte sentou ao meu lado no banco de trás.
Até ali, havia agido newtonianamente. Os fatos aconteciam e eu respondia a eles, de imediato. Passeando de madrugada com meus captores, pelas ruas vazias, tive tempo para reflexão. E ela partia de uma constatação óbvia: eu poderia morrer naquela noite. Há poucos minutos, estava chegando em casa, levemente aborrecido com minha sobriedade. Agora, bastava um deles se virar e puxar o gatilho e tudo acabaria. Ou me levar a algum terreno baldio, se não quisesse sujar o estofamento da mercadoria. Enfim, as possibilidades eram diversas, mas todas tinham o mesmo fim, o meu, no caso.
Há alguns dias atrás assisti a uma palestra. O filósofo, discorrendo sobre a contemporaneidade, lançou à plateia uma provocação: “não pensamos mais sobre a morte”. No mesmo instante, lembrei-me daquele carona.
Eu não sei qual a reação normal em um caso desses, se é que existe alguma. Posso, contudo, contar sobre a minha: foi a de um contabilista sentimental. Abri o livro de partidas dobradas dos acontecimentos da minha vida e comecei a comparar, o mais rápido que pude, as colunas de crédito e débito. Cheguei à conclusão de que, até ali, a coisa tinha ido bem. A coluna de débitos tinha grandes lançamentos. Beijos que não dei (mais de um). Pessoas que traí. Mentiras. No geral, mais arrependimentos por coisas que não fiz do que por erros cometidos. Os créditos, contudo, superavam no conjunto.
No final da contabilidade, dei uma olhada nos débitos pendentes. Aquele lugar onde anotamos aquilo que estamos devendo para nós mesmos e para os outros. Concluí que ninguém invadiria o meu velório com raiva.
Revisando este texto, tive um insight de livro de autoajuda. O patrimônio, as coisas que tenho e que deixei de ter (para não ser hipócrita, nunca me faltou nada essencial, pelo contrário) não entraram naquele inventário. Sequer pensei nelas. Tudo o que me veio à cabeça estava vinculado a pessoas. O que fiz e o que deixaria de fazer com elas se não retornasse à casa naquela noite. Principalmente, a falta que faria para a minha filha.
Em algum momento, um dos meus condutores analisou todos os meus documentos e descobriu que eu era juiz do trabalho. Aquela era uma carta, arriscada, que eu estava deixando para jogar na mesa se não tivesse outras opções. Eles poderiam odiar o gênero dos juízes e me matar lentamente, embora eu não fosse juiz criminal. Certamente teria dificuldade de explicar regras de competência para o julgamento dos feitos naquela circunstância. Ou poderiam, no que eu apostava, não querer se incomodar com a eventual repercussão do meu assassinato.
Seguiram-se conversas nervosas pelo celular. Tentei acompanhar, pois sabia que o meu futuro estava em discussão ali, mas a quantidade de sussurros, gírias e expressões que nunca havia ouvido impediam que eu compreendesse. Tentava buscar algum sentido apenas pelo tom de voz, mas ele sempre era nervoso.
A história está longa e o fim não é difícil deduzir, pois estou escrevendo do futuro e em primeira pessoa. Fui deixado em uma praça, relativamente perto da minha casa. Havíamos andado por quase uma hora, mas em círculos.
Muito se fala sobre o sentido da vida. Desculpe estragar tudo, mas não há “o” sentido. A vida tem o sentido que você lhe der ou deu, pois provavelmente você o perceberá somente quando a morte pegar na sua mão.
O carro foi achado intacto dias depois.
Levaram apenas a raquete de tênis.