Pequenas chances perdidas.

Pequenas chances perdidas.

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Este final de semana, quando estava a caminho de Florianópolis, ouvi um podcast no qual se discutia a velha questão do “o que eu faria de pudesse voltar no tempo?”

E me lembrei de uma história.

Era o início da década de 1990. Talvez 1993 ou 1994. Computadores ainda eram um privilégio para poucos e os celulares apareciam apenas em carros americanos nos filmes de cinema.

Geralmente não uso os nomes verdadeiros em minhas crônicas, para proteger a “fonte” de quaisquer embaraços. Esta, contudo, é uma história quase inocente. Portanto, usarei o nome real dos personagens. Eu e o Ricardo, meu colega de faculdade e companheiro de viagens, resolvemos passar o ano-novo em Florianópolis. Convidamos outros dois amigos, Kevlan e Boto (os apelidos são originais, os nomes verdadeiros perderam-se na memória), dois paulistanos que havíamos conhecido numa das viagens anteriores.

Saímos de Porto Alegre na noite do dia 24 de dezembro, logo depois da meia-noite, algo que somente alguém com aquela alegre demência juvenil faria. Passamos o natal com as famílias, entramos no surrado monza do Ricardo e fomos madrugada a dentro pela BR 101. Uma viagem de seis horas, em pista simples. O carro não tinha aparelho de som. Ou conversávamos para nos mantermos acordados ou ouvíamos música vinda de um som daqueles enormes, dos anos 1980, com cassete duplo. Ele pesava uns quinze quilos e funcionava por cerca de meia hora antes de esgotar as oito pilhas grandes. Ocupava quase todo o banco de trás.

O apartamento que alugamos era um capítulo à parte. Tínhamos a indicação, mas ao falar com a proprietária ela se recusou, inicialmente, a locar. Não havia sobrado nada dentro dele, afora lixos esparsos, depois de uma separação tumultuada. Dissemos que não nos importávamos e ela acabou cobrando apenas o preço do condomínio daquele mês. Achamos uma pechincha.

A proprietária não estava brincando. O cenário do apartamento era pós-apocalíptico. Não havia fogão, geladeira, camas ou sofás. Não havia sequer uma mesinha. Uma grossa camada de sujeira cobria o carpete que eu imaginava que tivesse sido cinza algum dia. Restos de mobília e peças quebradas espalhavam-se pelos cômodos. Haviam retirado até mesmo o chuveiro. Sobrou apenas um cano, cujo barulho parecia uma estranha risada ao despejar a água gelada nos corajosos que tentavam manter um mínimo de higiene, tomando um banho por dia. Não eram todos, deixo claro.

Choveu praticamente sem parar todos os dias. O apartamento, que imaginávamos utilizar apenas como o nosso dormitório, quase um camping de luxo, acabou por se transformar em nossa prisão. Lá pelo terceiro dia, quando esgotamos as nossas possibilidades de programação sob chuva, começamos a inventar coisas para fazer. Salvamos dos destroços um cavalete de pintura e nele colocamos um quadro-pôster, enorme, com a cabeça de um pastor alemão (quem tem isso em casa?). Criamos um jogo maluco, no qual atirávamos moedas no quadro e elas tinham que cair no pequeno espaço embaixo do cavalete, onde deveriam ser guardadas tintas e pincéis. Fazíamos isso sóbrios; não bebíamos durante o dia.

Para o meu consolo, em um dos quartos havia uma pilha enorme de livros deixados para trás. Dela, retirei e li A revolução dos bichos, de George Orwell, e alguns outros. Naqueles dias, descobri todas as maneiras possíveis de se ler deitado em um colchonete, sem travesseiro.

No caminho para o apartamento, havia uma pizzaria. Ela anunciava um rodízio por um preço ridículo nas quartas-feiras. Sempre que passávamos por ali, parávamos o carro, buzinávamos e, quando os garçons olhavam, gritávamos: “faltam três dias!” e assim por diante. Quando chegou finalmente a noite de quarta, quase não nos deixaram entrar.

O Boto era um cara alto. Não propriamente gordo, mas um pouco acima do peso. Tinha uma inteligência matemática fantástica. Resolvia problemas imediatamente, de forma quase instintiva. Me divertia desafiando-o com várias operações, com números enormes. Ele esperava eu terminar de falar e me devolvia o resultado bate-pronto. Na época, tinha uma confecção. Depois, desistiu e foi ser técnico do tesouro nacional. Passou em primeiro lugar no concurso. Perdemos contato com o tempo. Naquela noite, ele comeu uma quantidade inacreditável de pedaços de pizza. Qualquer número que eu tentasse estimar certamente não faria jus àquele feito gastronômico. Passou mal e tivemos que voltar ao apartamento para deixá-lo antes de ir para a festa.

Numa das poucas brechas que a chuva nos deu naqueles cinco dias, fomos à Praia Mole. Sem que eu soubesse exatamente como, uma garota começou a falar comigo. Ela era linda. Ficamos conversando por umas duas horas, pegando o vento frio na praia lotada. Todos tinham aproveitado a trégua para sair de casa. No final, ela perguntou como eu voltaria para o centro da cidade. Ela quer uma carona, concluí de forma sagaz. Como o carro não era meu e estávamos em quatro, tive que dar uma desculpa qualquer. Ela disse que eu havia entendido mal. Na realidade, ela estava me oferecendo uma carona. Minha recusa inicial, contudo, quebrou totalmente a magia do momento e ela disse para eu voltar com os meus amigos.

Ali, exatamente no instante em que ela fez a primeira pergunta, eu queria poder voltar no tempo, dar um tapa na minha cara e dizer para não ser burro.

Mas eu fui.

O que me consola, um pouco, é o fato de que tive a minha pena: ficar três horas trancados no carro, com quatro homens, sob uma chuva torrencial, em um engarrafamento de volta ao apartamento pós-apocalíptico. Tempo bastante para refletir sobre o meu erro.

Foram dias difíceis aqueles.

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