Seu rosto virou para o lado com o tapa.
Deixou a cabeça torta, como que respeitando o sentido no qual a mão lhe enviou. Três listas começaram a arder na bochecha, marcando em vermelho o caminho dos dedos. O tapa não foi forte. Fora um tapa mais espiritual do que físico. Um gesto de humilhação e desafio. Ele retornou o rosto lentamente à posição normal.
Quem se fixasse apenas na fúria adolescente dos olhos, jamais diria que estavam encravados em um rosto profundamente vincado pelo cinzel do tempo. A boca da senhora magra, de cabelos cinzas polvilhados de branco, estava torcida em uma posição que parecia impossível. Era como se o grito de ódio houvesse remanejado os músculos.
Em meio à cacofonia de pessoas, gritos e sons, fez-se um hiato de silêncio. A violência, que tantas vezes tocara a superfície naquela tarde de manifestações, havia finalmente rompido a leve tensão superficial da paz. Em certa medida, os integrantes dos grupos que ocupavam lados opostos na rua ficaram aliviados. Cada um queria machucar, de alguma forma, seus opositores-imbecis-desonestos. Por várias vezes, as turbas aproximaram-se, sem se tocar. Mantinham um pudor de escalar a agressão moral para a física. Ressoavam apenas palavras de ordem, que davam canal à raiva. Mas era um satisfação incompleta. Até aquele instante, a agressão não passara de uma promessa.
Pegou-se estranhamente pensando que sua agressora, na juventude, deveria ter sido uma mulher bonita. Mesmo agora, quando o ódio a desfigurava e o tempo cobrava o seu preço em idade, podia perceber submersos na carranca os traços femininos harmônicos. Era difícil ver a beleza sob as cinzas daquele ódio. Mesmo desperdiçada, estava lá.
Os dois estavam no meio da rua, com suas tribos às costas. Não havia um motivo para exatamente ele e a gladiadora ancestral terem avançado até aquele ponto. Quando avançou, pareceu-lhe algo natural. Sentiu-se empurrado por uma mão invisível. Um inconsciente primal, um chamado à defesa do seu clã.
Viu surgir por trás da opositora um homem. Era cerca de um palmo mais alto do que ele. Permaneceu como um guarda-costas, pronto para responder a qualquer coisa que se fizesse contra a senhora descontrolada. Estava claro que o brutamontes somente precisava de uma desculpa para poder, finalmente, agredir alguém com alguma justificativa moral. Imaginou-o, ainda usando aquela camisa da seleção brasileira, bravateando para os amigos sobre a forma como tinha impedido o comunista covarde de bater na velinha.
Às suas costas, ouviu passos. Era a resposta à aproximação do guarda-costas. Não se virou para ver quem vinha do seu lado. Ao contrário do que que acontecia antes, com avanços e retrocessos rápidos, a convergência agora era cautelosa. Qualquer agressão de lá, seria respondida de cá. O tapa fora a declaração de guerra, mas a verdadeira batalha estava prestes a começar.
O instante de surpresa havia passado. Quem não avançou, voltou a gritar. A senhora vociferou algo para ele, erguendo um dedo acusador. Ele percebeu a sua própria mão rígida e fechada, pronta para responder à agressão. Olhou para o queixo do guarda-costas. Somente poderia responder nele. Percebeu que um soco, apenas, não daria vazão ao seu caudal de raiva. Precisava de algo maior. Algo mais agressivo. Algo que transcendesse aquele caminho que estava desenhado para todos ali.
Com muito esforço, relaxou o punho. A guerreira septuagenária novamente ergueu o dedo. Ele agarrou a mão dela com força e a trouxe para si. O guarda-costas tentou reagir, mas o seu tempo de resposta foi lento.
Ele envolveu a senhora em uma abraço. Ele era miúda. Era como segurar um vaso de porcelana. Duro, mas que poderia ser quebrado a qualquer pressão mal realizada. Ela se debateu, como uma criança braba. Ele a apertou gentilmente e começou a falar com a voz mais calma que conseguiu produzir no ouvido dela. O guarda-costas agarrou o seu ombro, contudo ficou indeciso entre o que fazer. Ela ainda se contorceu, sem convicção, mais duas vezes, antes de lentamente deixar-se compreender nos seus braços.
E então permaneceram ali. Um ponto de quietude em meio à agitação. Os gritos foram se reduzindo, até cessarem. A imobilidade dos dois espalhou-se. A surpresa causada pelo tapa não era nada comparada a estupefação do abraço.
Aquele abraço absurdo e necessário.