Há uns cinco anos, o telefone tocou às onze horas da noite em um final de semana perto do Natal. Fiquei assustado. Duas possibilidades imediatamente me ocorreram: festa ou enterro. Atendi apreensivo e a voz de Leãozinho (um pseudônimo, para proteger a intimidade do personagem) atalhou os cumprimentos e foi direto ao ponto.
— Daniel, nós temos que formar uma banda para tocar Belchior!
Percebi que ele não falava sozinho comigo. A bebida sussurrava as palavras no seu ouvido. A voz estava impregnada, também, daquela excitação febril de quem está tocando há muito tempo. Uma espécie de adrenalina musical.
Nunca fui um fã de Belchior, embora gostasse muito de algumas das suas músicas. Depois de alguma conversa desconexa, lancei o argumento que entendia definitivo.
— Leãozinho, nem o Belchior toca mais Belchior.
O assunto, contudo, não morreu. E aqui chegamos ao personagem dessa crônica – Fernando. Eu, Leãozinho e Fernando tínhamos um trio power trio. A bem da verdade, estava mais para um soft trio. Eles tocavam violões melodiosos e eu me revezava no teclado e no cajon.
Fernando é um boêmio. Um homem de voz grave, poucas palavras e alma de passarinho. Fica no seu canto da mesa, deixando a noite se estender e observando, como um jacaré na beira do lago. E então dá o seu bote. Saca o pinho (violão, na sua linguagem) e começa a tocar para enfeitiçar a presa escolhida. Ele é assim, quase um “sereio” campeiro.
Falando em sereio, lembrei de outra história ótima a respeito do Fernando. Reza a lenda que ele se formou em educação física. Isso quando as calorias ainda não haviam se enfeitiçado por ele e formado uma grande comunidade ao redor da sua cintura. Estávamos em meio a uma olimpíada, com competição entre equipes, e precisávamos de um nadador com mais de cinquenta anos. Lá pelas tantas, lembramos do histórico de atleta de Fernando e ele foi suavemente coagido a entrar na piscina.
No dia da prova, dezenas de pessoas reuniram-se no entorno da borda. Fazia frio na serra gaúcha. E Fernando veio caminhando com uma bermuda que tinha a borda superior escondida pela excesso de boemia e se estendia até quase depois dos joelhos. Palmas e delírio. Os competidores pularam na água, sob os gritos frenéticos. Eram quatro. Três imergiram. Um ficou contorcendo-se dentro da água, em movimentos incompreensíveis. Era Fernando.
Foram muitos segundos de expectativa. Tantos, que pensamos até em se atirar lá para tentar fazer algum resgate. Mas nosso herói veio à tona em algum momento. E nadou lentamente, muito lentamente, com apenas um braço, até o final da carreira. Foi recebido com festa e alívio.
Somente quando a multidão se dispersou, ele confidenciou aos mais íntimos: Ao se jogar na piscina, havia perdido a bermuda. Ela ficou presa somente no dedão do pé direito. Todo aquele contorcionismo subaquático foi para tentar colocar-se honesto e salvar o decoro e os bons costumes. Depois, quase asfixiado, ainda teve que nadar com apenas uma das mãos, enquanto a outra segurava a bermuda.
Quantas palmas merece esse nosso Odisseu?
Voltando ao tema da crônica, depois de muita conversa, nosso trio resolveu voltar ao estúdio. Só que já era, então, um trio de cinco. Dois outros amigos foram convidados para “encorpar” o som. O primeiro ensaio iniciou e nada de o Fernando aparecer.
Outra característica notável do nosso amigo, é que ele tem uma concepção própria do espaço-tempo. Assim, quando marcares um compromisso, tenhas certeza de que ele chegará pontualmente, no tempo dele. Esse tempo em regra não corresponde ao das outras pessoas. Para dificultar mais, ele habita o gerúndio. Nunca está em algum lugar definido. Sempre está vindo, indo, saindo, chegando e assim por diante.
Pois eu e o Leãozinho começamos a perguntar no ensaio onde estava o Fernando. Coisa que nunca fazemos, pois ele é conhecido, mundialmente, apenas pelo seu sobrenome. Ou seja, dizer o primeiro nome dele é como inventar um pseudônimo. E aquilo se estendeu por algum tempo, com ligações e mensagens. Em determinado momento, o baterista não se aguentou e perguntou.
“Afinal, porra, quem é esse Fernando?”
E nascia o nome de uma banda.