Refúgios imaginários

Refúgios imaginários

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A realidade é o cemitério dos nossos sonhos. É a fumaça que asfixia os nossos desejos. Ela nos força a permanecer com ela, durante todo o dia, apenas para nos atirar em seus próprios braços no dia seguinte. Ela é dura, pois é o que existe. Ou, pelo menos, aquilo que percebemos existir.

A Copa do Mundo é um salto para fora da nossa realidade. A rotina se altera. As preocupações se alteram. As discussões se alteram. É como se você tirasse a roupa da sua rotina e pulasse na piscina de um universo paralelo. Um lugar bem parecido com aquele onde vivemos, mas onde um torneio de futebol é a coisa mais importante para quase todas as pessoas. Um mês depois, você emerge do outro lado. A realidade está ali, com a toalha nas mãos, pronta para lhe dar um abraço seco.

Durante a Copa existem discussões óbvias acerca dos times, jogadores e táticas. E outras anexas. Uma delas é exatamente a crítica à alienação. A crítica a esse pulo na piscina, feita por quem se recusa a se molhar.

Essa é uma discussão que ganhou importância no Brasil desde a Copa de 1970. O torneio foi utilizado como uma forma de desfocar a atenção da ditadura militar. A questão, contudo, é recorrente pelo mundo e pela história. Basta lembrar o panem et circenses, a política do “pão e circo”, denunciada pelo poeta romano Juvenal já no século I.

Pois lhes digo que loucura é, na verdade, nunca fugir da realidade. Para manter a sanidade, é necessário que a nossa imaginação, de tempos em tempos, abra os grilhões da razão e nos transporte para longe. Longe de onde estamos. Longe daquilo que nos cerca. Longe de nós mesmos.

Para você que está lendo esta crônica meio de lado, franzindo a boca e a considerando escapista, equivocada ou coisa pior, faço um acusação. Toda vez que você liga a televisão, em verdade tenta abrir uma janela para fora da aridez do seu cotidiano.

Sempre que abrimos um livro, ouvimos uma música ou vamos ao cinema queremos pequenos lapsos de alienação. Viver vidas que não são as nossas. Sentir outras sensações. Cultivar a mente, único lugar onde os fatos se ajoelham diante da imaginação.

Cuidado, portanto, ao criticar as “massas alienadas”.

Quando vejo milhões abrindo uma cerveja e postando-se à frente da televisão para fazer de uma partida de futebol algo muito maior do que a vida ou a morte, parafraseando o treinador escocês Bill Shankly, vejo um triunfo momentâneo do lúdico sobre a monotonia.

E, em verdade, não há por que se preocupar. Logo depois, a realidade estará ali novamente, com suas outras alegrias e tristezas. Com suas contas a pagar e suas eleições.

Poupe-se ao trabalho. Você não precisa lembrar aos outros da dureza da vida.

A própria vida se encarrega disso.

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