O picaretismo dos métodos industrializados para uma vida melhor nos atinge em ondas, levando na vazão da maré um lucro imenso. Há alguns anos, assaltou-nos a moda da neurociência. Depois, bateram na praia os livros de autoajuda. Seus autores pregavam em palestras para multidões. Agora, há esse tsunami de coachs, com treinamentos que vão desde como fritar melhor uma batata até como se tornar um líder mundial.
Mas esse, na verdade, não é objeto dessa crônica. Apenas me lembrei da loucura dessa pasteurização de viver em fórmulas por dois motivos. Primeiro, porque essa crônica surgiu exatamente em um curso sobre métodos de negociação. Sim, sim, um curso “sério”, que tenta observar, tanto quanto possível, posições racionais e rigor científico. Segundo, porque a crônica, em certa medida, faz exatamente o que condenei acima: dá conselhos para a vida do leitor. Enfim, quem resiste a dizer aos outros o que fazer?
No curso sério, apreendíamos que uma das primeiras coisas a se fazer em uma tentativa de conciliação é identificar interesses comuns. Tratávamos de exemplos e surgiu a da briga de um casal. Mesmo quando o relacionamento atravessa um momento horroroso, no qual os dois parecem não concordar em nada, há, em regra, ao menos um interesse em comum – nenhum deles quer ficar ainda pior do que já está.
Simples e lógico. A partir daí, pode se construir alguma saída para o problema (mesmo que seja a separação).
E isso me fez viajar até a primeira regra de relacionamentos que aprendi, ainda adolescente, com o meu pai. Naquele tempo de descoberta da sexualidade, disse-me um dia que o problema dos namorados é eles sempre começarem onde pararam no dia anterior. Era claro que ele estava preocupado com coisas específicas, como, por exemplo, ser avô. Ele tinha razão sobre isso, mas, principalmente, porque percebia uma regra fundamental sobre relacionamentos: eles são um processo evolutivo.
Tudo o que é vivido, dito e sentido é acrescido ao histórico e, ao contrário do que ocorre na Internet, não há como deletar. Aliás, se tentar deletar, fica ainda pior. Seu parceiro sempre tem aquela pasta de “assuntos pendentes” na memória, o equivalente emocional do print de tela.
Relações que não mudam estão fadadas a morrer. Aliás, relações que permanecem iguais há muitos anos estão apenas vegetando. Se desligar os aparelhos ou algum dos dois receber a cantada certa, viram passado. É o processo evolutivo que mantém a relação viva.
Quando você mantém uma relação saudável com mais de dez anos…
Ok, ok. Paro aqui e dou algumas dicas do que seria uma relação saudável. Por exemplo, você tem vontade de voltar para casa no final do dia? Quantas vezes por ano pensa em matar sua cara metade? Ainda existe tesão? Essas pequenas coisas é que lhe respondem.
Bem, voltando ao tema. Olhar para trás em uma relação de dez anos é quase como se intrometer na vida de estranhos. Você mudou, seu parceiro mudou, os locais mudaram, o que vocês gostavam e não gostavam mudou. O desejo mudou. A forma como vocês reagem, sua paciência, sua saúde, suas aspirações… Tudo mudou, às vezes um pouco, geralmente muito. O sentimento entre vocês também provavelmente mudou. A biologia nos ensina que capacidade de adaptação é diretamente proporcional à capacidade de sobrevivência. Se queremos a sobrevida do relacionamento, o máximo que podemos fazer é tentar conduzir algumas destas modificações para o ponto onde desejamos e aceitar aquelas sobre as quais não temos controle. Quase como a oração de São Francisco de Assis: “Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não pode ser mudado e sabedoria para distinguir uma coisa da outra”.
E há um importante desdobramento desta “lei”. Quando o seu parceiro lhe incomodar muito, muito, mas muito mesmo; quando tudo o que você quer é ferir, enfiar um estilete no machucado do seu “adversário” e sacudi-lo de um lado para outro; quando você pensa em chamá-la de gorda ou dizer que ele tem pau pequeno, por exemplo, lembre-se de que há um conjunto de coisas que NUNCA deve ser tocado. Eu sei, é uma tentação grande. Mas grandes feitos requerem grandes esforços e quase nada é mais difícil do que manter uma relação sólida nesse mundo líquido.
Lembro de uma discussão que tive, há muito anos. Minha então parceira abriu a boca e eu imaginava o que ela iria dizer. Antecipei-me e falei baixo:
— Não diga nada que não possas retirar depois. Não vai ter volta.
Seja o que for, ela engoliu as palavras. Quase vi elas descendo pela garganta marcada por veias de fúria. Virou as costas e se foi. Algum tempo depois, reatamos.
Nunca, jamais diga “A” verdade dolorosa. Qual verdade? Você sabe. Sempre sabemos como causar o maior mal possível a quem conhecemos e, principalmente, às pessoas de quem gostamos. É instintivo. Ainda não inventaram uma máquina do tempo e aquele lodo ficará, para sempre, impregnado na relação. Corroendo-a. A sinceridade é um remédio poderoso demais para ser utilizado indiscriminadamente. Em excesso, transforma-se em veneno.
Pois bem, esses são meus conselhos.
Use-os por sua conta e risco.
Alguém precisa de um coach?