Vizinho é como parente, você não escolhe. Entre as muitas loterias da vida, ter bons ou maus vizinhos depende do resultado de alguma roleta cósmica. Ela define se você conviverá com uma parceria aprazível ou enfrentará um inimigo morando do outro lado da fina parede de tijolos.
É claro que se você se enquadrar na grande categoria das pessoas infelizes (invejosos, fofoqueiros, mal-educados e congêneres), não há sorteio que lhe ajude. Mas o bom coração desse escritor presumirá que você seja mais sociável do que um leão faminto preso em uma jaula.
Foi a existência de vizinhos que nos permitiu parar de andar por aí catando frutinhas e caçando pequenos roedores para comer. A ideia de morar próximo dos outros foi a base daquilo que hoje chamamos de “cidade” e “civilização”. Há uma ideia inconsciente de que ter vizinhos nos dá uma rede de proteção.
Essa necessidade persiste em locais onde a mão do vizinho é a única à disposição na hora do aperto. No mundo urbano de classe média, contudo, há uma contradição. As pessoas adoram viver na cidade, mas não gostam de conviver com as outras que moram por ali. Vizinhos nada mais são do que aqueles que ocupam o lugar da frente no engarrafamento. A nossa urbanidade branca, egoísta e individualizada tem como ideal de vida desconhecer o nome da pessoa que mora ao lado.
A pandemia nos deu várias espécies da rasteira. Uma delas foi nos trancar em casa por meses, em um campo de concentração com a ilusão de lar. Trancados junto aos vizinhos que fingíamos não existir, em uma panela de pressão social. E isso multiplicou histórias. Contarei duas.
A primeira é dramática. Como sou um escritor barriga-fria, já adianto que tudo acabou bem. Em meados do ano-da-pandemia, um casal de amigos começou a ficar doente. Era apenas uma gripezinha, pensaram. E a gripezinha foi crescendo, embora o varão tivesse histórico de atleta. E a coisa seguiu como na música do Peninha “crescendo, crescendo me absorvendo, e de repente eu me vi assim, completamente seu, vi a minha força amarrada no seu passo”. Quando quase não conseguiam mais respirar, conclui-se que era a doença-que-não-se-pode-mencionar.
Nesse ponto, entraram na história dois vizinhos. O primeiro chamarei pelo codinome de Clécio, para preservar a sua identidade. Colocou o casal no carro e andou mais de 120 quilômetros, com chuva e vidros fechados, até o hospital. Depois, também ficou doente. Talvez por essa viagem, talvez não. Nunca se saberá. O segundo, que apelidarei de João (dei-me conta de que já há outra crônica sobre ele e com o mesmo pseudônimo), albergou os dois filhos do casal internado, que se viram súbita e literalmente sem o pai e sem a mãe. Ele e a mulher cuidaram das crianças por trinta dias. Ao final, elas foram devolvidas aos pais, que tiveram alta.
Vizinhos.
Há uma outra história boa do vizinho Clécio. Em algum lugar do passado, fiz uma festa aqui em casa. Daquelas que, às seis da manhã, recolhem-se as garrafas do chão, pois a dança continuava firme, embora os dançarinos nem tanto. Alguém poderia cair e se cortar. Entre o nascer do sol e o meio-dia, a festa se extinguiu. Uma festa daquelas não se acaba. Ela se esgota. Como um balão que sobe para beijar o céu e, depois de cumprir o seu desejo, desce com o seu fogo consumido.
Fui dormir com aquele peso de levantar no outro dia e arrumar toda a bagunça. Por bagunça, entenda-se os fundos da casa como um campo de guerra no dia seguinte à batalha. Acordei e, ainda sonolento, segui arrastando as correntes imaginárias para cumprir o meu castigo. Cheguei lá e tudo brilhava. Lixo recolhido. Louça lavada. Móveis no local. Parecia que a fada-madrinha da cinderela tinha passado por ali. Ocorreu aquele breve momento de desconexão com a realidade. Estaria ainda bêbado? Senil? Teria imaginado a festa? E então percebi que a fada era o Clécio. Levantou cedo e foi arrumar a casa do vizinho (no caso, a minha), sem fazer barulho, para não me acordar. Isso, meus amigos, não é só um vizinho, é um homem para se casar.
No cassino dos vizinhos, como vocês podem ver, dei sorte.
Mesmo com sorte, qualquer lugar tem as suas almas cinzas. As piores são aquelas que tentam se apresentar como seres de luz. De perto, percebe-se a fina demão de cal, sob a qual tentam ocultar a sua obscuridade. Sobre eles, talvez eu escreva um dia, quando tiver tempo a desperdiçar e quiser ser malvado.
Pensando bem, será um texto divertido de escrever.