Eu sabia que ela estava em algum lugar da minha casa. Já havia percorrido todos os quartos, salas e corredores mais de uma vez. Continuava desaparecida. Como estava ansioso, percebi que não procurava direito. Esforcei-me para enxergar um pouco além. Além da realidade. Além da crueza que recobre e banaliza tudo. Forcei-me a abrir aquela fissura entre o mundo que vemos e o mundo como deveria ser. A esgaçar a fenda com o fórceps da imaginação.
E somente então ela se revelou.
Estava sentada em uma cadeira, no canto da biblioteca, voltada para a parede. Não via o seu rosto. O vestido alguma vez tivera cores vivas, mas haviam desbotado. Remendos descuidados o cobriam. Feitos com restos de tecido de outras cores, concediam à roupa um aspecto de colcha de retalhos. Mas o que mais chamava a atenção eram as pedras.
Muitas. Grandes e pequenas. Elevavam-se sobre as suas costas em direção ao teto. Não conseguia ver o que as mantinha ali, naquela espiral improvável. Também não sabia como aquelas costas de aparência frágil suportavam o peso. A qualquer momento, parecia poder romper-se.
Aproximei-me cautelosamente e coloquei a mão suavemente no seu ombro. Ela deu um sobressalto e virou-se na minha direção, encolhendo ainda mais. As pedras se moveram, sem cair. Sua expressão era de medo.
— Constituição?
— S-sim?
Sua voz era vacilante. Forcei-me a não demonstrar minha repulsa. Seu rosto, como se fosse uma extensão do vestido, estava deformado pelo que pareciam sucessivas operações plásticas. Partes extraídas e outras enxertadas no seu ligar. Algumas, grosseiras, sequer cabiam nos locais onde colocadas. Mesmo assim, passado o impacto inicial, ainda se viam os sinais da beleza original. Uma austeridade. Uma pureza de propósitos que mesmo os olhos de cores diferentes não conseguiam esconder. Tinha a constituição física de uma velha senhora, embora tivesse pouco mais de trinta anos. Percebi que estava sendo rude, encarando-a daquele jeito.
— Constituição, sou eu.
— Sim, eu sei quem você é — disse ela, virando-se de novo para a parede. A voz adquiriu alguma força. — O que você quer? Modificar algum pedaço meu ou pedir que eu lhe dê alguma coisa?
— Não, eu… — Aquela crueza me desconcertou. — Eu apenas queria falar contigo.
Ela continuou impassível, olhando para o nada, e eu prossegui:
— Faz vinte anos, lembra? Vinte anos que eu jurei que te defenderia, no dia da posse para o meu cargo.
Ela deu uma risada sem graça, que poderia ser confundida com uma baforada. Virou-se para mim e com uma das mãos fez um gesto, mostrando a si mesma. Pela primeira vez, vi que a mão do outro lado estava presa ao próprio corpo por uma estranha rede de papel, na qual apareciam pedaços de páginas escritas.
— Olhe bem para mim. Parece que você não está cumprindo o seu julgamento direito.
Era claro que ela tinha razão. Constrangido, adiantei-me para tentar ajudá-la de alguma forma.
— Vou tentar desamarrá-la.
Ela olhou conformada para o emaranhado que recobria o seu braço esquerdo.
— Não adianta. É a rede das leis infraconstitucionais. Ela também faz parte de mim agora, de alguma forma. E o seu juramento foi de cumprir toda a Constituição e não apenas parte dela.
— Mas você não consegue se mexer direito com isso aí! — Toquei na rede, mas ela moveu o corpo para o outro lado. Acima dela, as pedras balançaram.
— Não! Você pode se perder dentre dessa rede. Bem, de certa maneira, você já está perdido nela e sequer sabe. Ao menos, ainda tenho uma mão livre. Dá para fazer muita coisa com ela.
Eu estava inconformado.
— Mas por que você fica aqui, sozinha, olhando para a parede?
Ela deu outro daqueles sorrisos sem graça.
— Eu amo vocês, mas me dói ver no que se tornaram. E o que estão me tornando. Eu até tento ficar aqui, sozinha, olhando para o nada. Mas a minha condenação é estar em todo lugar. Em qualquer pedaço do cotidiano de qualquer pessoa. Regulando tudo. — Sua voz falhou, mas voltou. — Não. Esta não é minha pior condenação. A pior é o desrespeito. Os pedações que me arrancam. Os enxertos. Os pedaços que jurisprudência me tira. E essas pedras. — A mão ainda livre apontou para as costas.
— O que são essa elas? Por que elas estão aí?
— São as instituições. Grandes e pesadas. Infladas por interesses pessoais. Somente eu as mantenho juntas ainda, impedindo o deslizamento que triturá a todos. — Ela pareceu curvar-se mais. —Não sei quanto tempo suportarei. Ou quanto tempo demorará até que alguém consiga retirar de mim alguma cláusula pétrea e eu murche até desaparecer. Muitos querem. Odeiam-me. E estão cada vez mais fortes.
Sua tristeza quase me sufocava. Parte daquilo era minha culpa, eu sabia.
— Mas há alguma coisa que eu possa fazer por ti?
Ela olhou com ternura para mim pela primeira vez.
— Lembre-se do quem eu era. Da minha mensagem. Do que eu queria fazer. Mantenha o meu espírito vivo.
— Não vamos deixar que você morra.
Ela riu, desta vez com algum prazer, embora por sobre o som ainda permanecesse aquela nota grave e constante de tristeza. Passou delicadamente os dedos no meu rosto. Tinha cheiro de papel, misturado com liberdade, igualdade e fraternidade.
— E o que adianta viver sem minha essência?
E então, com um gesto, mandou-me de volta à realidade.