O recorte de janela no final do corredor permitia a vista de apenas um pedaço do Guaíba. Estava com água cinzas e revoltas. Águas que refletiam o seu estado de espírito. Deu um passo para a direita e espichou o pescoço. Conseguiu ver um pequeno recorte do Beira-Rio, no exato instante em que uma mão delicada tocou o seu ombro.
— Sr. Mário?
Nunca o seu nome lhe pesara tanto. Ouvi-lo provocou uma imediata sensação de ansiedade. O chamado parecia uma acusação. Ou pior, uma sentença. Virou-se devagar para a recepcionista, que se vestia como uma enfermeira. Ela mantinha no rosto um sorriso simpático e padronizado. Estava acostumada àquele tipo de situação e mostrava um bem representado papel de pessoa solidária. Ele imaginou que, ao final do turno, ela tirava aquela máscara de afabilidade e retornava para casa com olhar cansado e irritadiço, esgotada pela falsa empatia. Ninguém poderia ser daquele jeito vinte e quatro horas por dia. Percebeu que divagava apenas para adiar o inevitável.
Ele não respondeu. Simplesmente aquiesceu com a cabeça e a seguiu pelo corredor do Hospital Mãe de Deus. Sua filha nascera ali. Há quanto tempo? Quantos anos ela tinha? Vinte e seis? Não. Vinte e sete. Ele era tão jovem quando a pegou pela primeira vez. Continuava sendo jovem. Pelo menos, era o que acreditava até um mês atrás. Os sessenta anos são os novos quarenta!, dizia aquele comercial de plano de aposentadoria, onde um casal de jovens velhos sorria enquanto balançava de mãos dadas no brinquedo infantil. O sol atrás banhava-os com fachos de luz que se infiltravam por toda a cena, produzindo efeitos coloridos na lente da câmera e chegando ao espectador como sinais de benção divina. Se estivesse naquele comercial agora, provavelmente empurraria o casal do balanço e, enquanto ainda estivessem no chão, estupefatos, gritaria para que voltassem à realidade das suas idades. Faria com eles o que a realidade fez com ele. A realidade que novamente o esperava no final do corredor à direita, em um acanhado consultório médico.
A recepcionista vestida como enfermeira deixou-o na porta e abriu um pouco mais o sorriso. Em um reflexo condicionado, ele também sorriu. Não gostou de si mesmo por ter feito aquilo. O sorriso manipula as pessoas. Não queria sorrir. Não sabia exatamente o que queria, mas certamente não queria sorrir.
O médico, para o seu consolo, tinha o rosto duro e sério, enquanto segurava na mão direita o que Mário imaginou ser o resultado da biópsia do tumor encontrado na base do seu crânio. O motivo das seguidas dores de cabeça, tonturas e desmaios que lhe vitimavam no último mês.
Com ar grave, o médico indicou a cadeira na sua frente.
— xxx —
Mário não sabe quanto tempo permaneceu na sala depois que o médico o deixou sozinho. Cinco minutos, meia hora? Perdeu a noção do tempo. Esperou a última lágrima em seu rosto secar antes de se levantar. No caminho para o carro, não teve coragem de olhar para a recepcionista. Também não encarou as pessoas que passavam à sua volta. Sentia vergonha, mas não conseguia definir o motivo. Refugiou-se aliviado, por fim, dentro de seu carro.
No caminho para casa, não conseguia organizar os pensamentos. Quando tentava iniciar a lista das providências a tomar, imagens da cidade lhe jogavam lembranças desordenadas, embaralhando qualquer tentativa de manter a lógica. O prédio em frente ao qual havia beijado a colega de colégio. Ou seria da faculdade? A sinaleira onde batera o carro. O medo de contar ao pai. A mão dele passando em sua cabeça ao dizer que o importante era ele estar bem. A avenida Princesa Isabel, o longo caminho que gostava de fazer a pé para o estádio em jogos importantes. As muitas idas e retornos, cada um com a sua própria história de vitória ou derrota.
Em algum momento, a ideia de sair daquele mar de recordações e se enfiar em casa lhe pareceu insuportável. Seguiu em frente no cruzamento com a rua Felipe de Oliveira, onde deveria dobrar a direita. Começou a dar voltas aleatórias. Entrou em ruas que nunca percorrera, em uma negligência que agora lhe parecia indesculpável. Caminhos novos e surpreendentes em sua beleza e, ainda mais, em sua feiura. Centenas. Milhares de casas, que abrigavam cada uma a sua própria história e as histórias de todos os que as haviam habitado. A cidade lhe pareceu opressivamente rica. Um livro onde cada página desdobrava em si milhares de outros livros. Lembrou-se da pilha de livros que tinha para ler que sempre encarara com prazer e falta de urgência. Quanto tempo ainda teria? Quantos poderia ler?
O telefone tocou. O painel do carro avisou que a chamada vinha de sua casa. Não queria quebrar aquele momento. Desconectar-se dessa união que sentia com o mundo. Desligou o aparelho e continuou conduzindo o carro a esmo pelos meandros da cidade e da sua vida.
Em algum momento, chegou ao Parcão. O vislumbre, por entre as árvores, das luminárias do campo de futebol fez com que ele parasse. O parque estava vazio. Caminhou com seus sapatos de sola de couro pelo cascalho que percorrera vezes sem conta calçando tênis ou chuteira. E, de alguma forma, viu sua versão adolescente passar por si, junto dos amigos em direção ao campo. Sentou na arquibancada e assistiu àquele jogo imaginário. Por um breve instante, cogitou se aquele estado de espírito não era um dos sintomas do seu tumor. Se fosse, era a primeira coisa agradável que ele havia lhe dado.
Em um canto do parque, escondido sobre árvores hoje substituídas por arbustos, viu a si mesmo fumando maconha pela primeira vez. Sorriu e novamente se voltou para campo vazio, onde o jovem Mário colocava a bola embaixo do braço, lançava um braço sobre os ombros de um dos seus amigos – o Pelicano, o apelido dele era Pelicano – e tomava o caminho de casa. Ria, provavelmente contando vantagem de algo que havia feito no jogo.
Mário os acompanhou com o olhar até quase fugirem da visão da sua mente. Na beirada dela, o jovem Mário se voltou, abanou, abriu ainda mais o sorriso e partiu.
Ao seu redor, o vento soprou, trazendo a poeira das partes judiadas do campo que já não tinham mais grama. Sentiu-se integrado àquele pó. Àquela arquibancada. Como uma pedra, um nada. Algo para o qual ninguém olha, mas que está ali, invisível e deliciando-se com o fato de, simplesmente, ainda existir.
Abandonou o carro no estacionamento e foi para casa conduzido por suas lembranças. A noite caiu a seu redor e, de súbito, assim como vieram, as lembranças se foram. Restou ele, o vento e o ritmo dos seus passos. Quando girou a chave na fechadura, ouviu um grito dentro de casa. A expectativa de rever a mulher a filha encheu o seu coração de alegria. Insistira que nenhuma delas o acompanhasse na consulta. Não sabia qual seria a sua reação. Não queria parecer fraco. Via, agora, que parecera tolo. Tinha medo da fraqueza, mas não da própria tolice.
No seu segundo passo dentro do hall, a mulher se atirou no seu pescoço. Chorava, sussurrando em seu ouvido frases desconexas de preocupação. Logo ao lado, sua filha brigava com ele por não ter dado notícias. Ela sempre tivera dificuldades para demonstrar afeto, embora ele soubesse que o seu coração era o maior dentro daquela sala. Estendeu o braço e puxou-a para dentro do abraço. Depois de um átimo de resistência, ela se deixou levar e, subitamente, também começou a chorar. Os três ficaram ali, unidos. Como se outra pessoa estivesse falando aquilo, ele se ouviu dizer.
— É benigno.
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor esquisita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…
Mario Quintana
Minha homenagem à Porto Alegre e ao seu poeta maior, filho por amor, que hoje vaga, invisível e delicioso, no vento da madrugada da cidade do nosso andar.