O pôr do sol à frente, o vinho na mão direita e a morte na esquerda

O pôr do sol à frente, o vinho na mão direita e a morte na esquerda

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“Oh, mana
Não vale a pena pagar
Um centavo, um retalho de prazer
Oh, mana
Eu quero é morrer
Bem velhinho, assim, sozinho
Ali, bebendo um vinho
E olhando a bunda de alguém”
Baladas, de Nei Lisboa.

Carsten sentiu a cama bater no gradil da janela. Seu braço doeu onde a agulha estivera enterrada. Havia sido retirada há pouco, assim como o restante do tratamento, quando concluíram que se tratava de um aneurisma da aorta e que aquela condição era inoperável.

A enfermeira deu um pequeno sorriso, que continha um pedido de desculpa. Ele apenas balançou a cabeça. Um gesto mínimo. Economizava o resto das suas forças. Ela verificou a altura do travesseiro. Queria que tudo estivesse perfeito. Por fim, deu-se por satisfeita e recuou, abrindo espaço para a filha de Carsten.

Ela estendeu e ele uma taça de vinho: Riesling alemão. Não havia encontrado – de última hora e ainda confusa com os acontecimentos daquele dia – a marca que o pai gostava. Conseguiu apenas deixar o vinho barato levemente frio, utilizando a geladeira do refeitório das enfermeiras. Conferiu novamente a temperatura com a ponta dos dedos contra o vidro. Já havia feito aquilo várias vezes. Veio à sua mente a lembrança do pai lhe ensinando a sentir a temperatura do vinho. A taça tremeu levemente, e continuou a tremer quando Carsten a tomou da mão da filha.

Ele fez um brinde mudo aos que estavam ao seu redor e a levou aos lábios. Uma pequena gota escorreu pelo canto da sua boca. Não percebeu. Fechou os olhos. Os cantos da boca se arquearam levemente, em uma demonstração de prazer.

Estendeu, então, a outra mão. Por mais que entendesse o pedido do pai, a filha não quis satisfazer seu desejo. Foi o neto quem se adiantou. Puxou um longo e fino cigarro mentolado da carteira e o acendeu. A enfermeira teve que controlar o seu ímpeto de retirar o cigarro da boca do menino e apagá-lo. Aquela era uma situação excepcional. Conteve o enjoo com cheiro e permaneceu ali a postos.

Carsten segurou o cigarro em frente ao rosto e olhou para ele como se nunca tivesse visto um. Fazia mais de quinze anos que não fumava. Depois que você é um fumante, contudo, nunca deixa de ser um. A primeira tragada iniciou deliciosa. Sentiu a fumaça descer ardendo levemente. Os pulmões desenharam-se em seu peito, conforme ela os tomava. E, então, veio o acesso de tosse.

A filha e a enfermeira se adiantaram, preocupadas. Um pouco de vinho virou no lençol. Ele conseguiu se controlar e impediu que lhe retirassem o cigarro. Mesmo que não fosse mais tragar, queria segurá-lo. E assim, com a taça em uma das mãos e a fumaça erguendo-se da outra, pode finalmente se concentrar no cenário à frente.

O sol descia no horizonte, iluminando-o com uma luz amarela. À medida que o tempo passava, a luz se travestia de vermelho. Sua mente pulava de uma recordação a outra, de forma rápida e sem ordem aparente. O dia em que conheceu a sua mulher. Sua festa de formatura. Sua amante. O nascimento da filha. As brincadeiras com o neto. Um gol que fez quando era criança. Sua mãe levando-o pela mão na rua. A última vez que viu a mulher, exausta de enfrentar o seu câncer. A primeira e nervosa noite dos dois juntos. A mão da filha pousou em seu ombro. O neto se aproximou. Um leve calor tomou conta do seu peito.

Por fim, o sol se pôs. Ele achou lindo. Lágrimas escorreram dos seus olhos.

O cigarro deixou de arder. O vinho acabou.

Naquela noite, Carsten morreu enquanto dormia. A enfermeira o encontrou imóvel.

Tinha um pequeno sorriso nos lábios.

 

 

 

Carsten Flemming Hansen morreu em abril de 2017, no Aarhus University Hospital, na Dinamarca. Seu último pedido foi ver o pôr do sol, bebendo uma taça de vinho e fumando um cigarro, cercado por sua família.

       Este conto é a minha homenagem a alguém que, confrontado com a face feia da morte, preferiu celebrar a vida e continuar se encantando com a beleza.

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