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Eles levaram suas mãos ao mesmo livro e na mesma hora.
A mão dele chegou antes. Ela tomou um susto ao tocar a pele áspera, ao invés da capa fria de Porcos com asas, um livro esgotado há anos e que estava largado milagrosamente naquele balaio. Ela olhava para o lado, preocupada com a filha que havia desaparecido, por um breve instante, atrás de outro cliente na beira do estande. Ambos retiraram as mãos, como se tivessem tomado um choque, e se desculparam ao mesmo tempo, sentindo como se estivessem roubando o livro um do outro. Riram juntos, também. Por um momento, compartilharam o constrangimento, até a atenção dela ser novamente atraída por uma ponta da saia vermelha da filha, que viu se afastar.
Ele a viu andar rápido pelo corredor, chamando pela filha, até ser encoberta pela multidão que lotava a feira do livro.
Sentiu vontade de sair no encalço dela, mas não saberia o que dizer quando a encontrasse. Ou saberia? Ele sempre se condenava por ser vacilante. Ela tinha uma filha. Provavelmente era casada. Ou será que não era? Jamais tiraria aquela dúvida se não perguntasse. Ficaria apenas com uma lembrança: mais uma derrota para a imobilidade.
Foi então que tomou a decisão. Comprou os livros que havia escolhido e saiu caminhando pelo corredor em busca da blusa branca, do rosto fino e do cabelo loiro, quase etéreo.
Logo a encontrou. Segurava a filha – cujo cabelo também era de um amarelo-quase-branco – pela mão. A pequena lutava para se libertar. Aproximou-se tentando ver se havia uma aliança, mas a mão esquerda dela estava encoberta por um livro aberto.
Já havia ido até ali. Não desistiria.
Colocou o exemplar de Porcos com asas, que havia comprado, na mesa da banca em frente a ela.
— Acho que você deixou isso pra trás no outro estande.
Ela não entendeu o que estava acontecendo, até o reconhecer. Sorriu constrangida.
— Desculpe, mas eu não comprei ele.
— Eu sei. Mas eu comprei para ti.
Ela adotou uma atitude defensiva. A filha fez um choramingo e puxou forte pela mão, quase se libertando. Ele gaguejou, mas foi em frente.
— É estranho, eu sei, mas não se assuste. Se eu não fizesse isso, não me perdoaria. Não precisa ficar com medo. Se quiser, eu viro as costas agora e vou embora. Mas … Eu queria muito te convidar para tomar um café comigo. Aliás, meu nome é Armando.
Ela o analisou. Alto, despenteado e um pouco acima do peso. Vestia uma camiseta com o desenho de Heisenberg, do seriado Breaking Bad. Era um ponto para ele. Ela gostava do seriado. Fez um cálculo rápido. Ele havia escolhido o mesmo livro que ela. Não só isso, comprou e lhe trouxe. Podia ser, contudo, um maluco. E ela estava com a filha.
Foram os olhos dele que a convenceram. Ela viu o nervosismo. E bondade. Nos anos posteriores à sua separação, não havia tido grandes possibilidades de conhecer outras pessoas. Martina, a filha, e o trabalho tomavam todo o seu tempo. Ela balançou a cabeça.
— Acho que podemos tomar um café. Se você me atacar, eu grito. E saiba que, independentemente do que acontecer, ele agora é meu! — Sorriu e colocou o livro na sua bolsa.
Quando voltou a si, ele olhava fixamente para o exemplar de Porcos com asas, que segurava com ambas as mãos. Nunca havia saído atrás dela. Permaneceu ali, inerte. Como sempre. Perdido em sua imaginação, que alimentava de forma abundante com as histórias dos feitos de outras pessoas e personagens. Era uma mente flácida de tanto alimento e tão pouca ação.
Sentiu uma profunda tristeza. Acreditou em sua história, por alguns momentos. Recolocou o livro na estante, ainda com o gosto do beijo imaginário dela na boca.
Repetiu para si, mais uma vez, a frase em destaque no seu perfil do Facebook: Na vida, precisamos ser o herói das nossas próprias histórias.